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Foto do escritorJoão Vitor Bortoleto

A crise do gás em 2022

Atualizado: 5 de out. de 2022

A gigante estatal russa Gazprom, líder mundial em fornecimento de gás e responsável por 12% de toda produção global, anunciou recentemente mais um novo e severo corte na provisão do combustível à Europa. O gás natural é fundamental para os europeus principalmente na fase mais aguda do inverno, onde é utilizado em aquecedores domésticos e industriais. Logo, a crescente escassez do produto na Europa desencadeada, sobretudo, pelo isolamento russo após a invasão na Ucrânia, é motivo de enorme preocupação não apenas pela extrema importância dessa fonte de energia, mas também pelo seu possível impacto nos preços das demais fontes de energia.


Tubulações nas instalações de terra firme do gasoduto 'Nord Stream 1' em Lubmin.
Tubulações nas instalações de terra firme do gasoduto 'Nord Stream 1' em Lubmin. Foto: REUTERS/Hannibal Hanschke

A dependência europeia do gás russo não é uma novidade e engana-se quem acredita que essa relação comercial começou com o fim da União Soviética. O estreitamento energético entre Europa e Rússia iniciou-se ainda durante a Guerra Fria: gasodutos que atravessavam a Ucrânia sentido à Europa central operam desde os anos 1970, embora o fluxo do combustível para o velho continente tenha se intensificado com o fim do bloco socialista, o que desencadeou um ciclo inédito de abertura comercial no planeta. A condição de produtora superavitária de gás colocou a Rússia na condição natural de fornecedora do produto para a Europa, uma vez que esta não produzia o suficiente para seu consumo. O gás, portanto, na nova conjuntura pós-invasão da Ucrânia, se torna um importante instrumento de um conflito declarado entre Rússia e Europa: mais uma batalha que, ao menos desta vez, se opera no campo econômico e diplomático.


No último dia 27 de Julho, a Gazprom anunciou que o Nord Stream 1, gasoduto que liga Rússia e Alemanha pelo mar Báltico, passaria a operar a 20% de sua capacidade. Inaugurado em 2011, o Nord Stream 1 teria uma capacidade de transportar cerca de 55 bilhões de metros cúbicos anuais, mas a drástica redução do fornecimento acompanha as determinações do governo alemão em paralisar a inauguração do Nord Stream 2, que teria potencial de dobrar a entrega do gás na Alemanha. O anúncio do corte preocupou representantes dos Estados europeus, que agora se articulam com os Estados Unidos para reverter os potenciais danos da medida. O que se vislumbra, portanto, é a substituição energética para a já almejada energia renovável, porém, no curto prazo, será o carvão o substituto imediato que deverá atenuar as drásticas consequências da escassez de gás e também do petróleo, do qual a Rússia também é importante fornecedora.


Novos compradores do gás russo e a resposta europeia


Enquanto isso, a “isolada” Rússia vai encontrando novos interessados na sua energia embargada pelo Ocidente, com destaque para alguns países da Ásia, como China, Índia, Paquistão e Irã. Para estes, a situação representa uma oportunidade que pode representar um novo salto na produção interna de suas economias, uma vez que estamos falando de um setor altamente relacionado ao PIB das nações. Isso explica em parte a resistência dos países em aderir às sanções impostas à Rússia pela Europa e pelo Estados Unidos.


A esperança dos europeus, por sua vez, é que no conflito do gás a Europa saia relativamente ilesa, ao menos até este inverno. Em junho o parlamento europeu aprovou um plano de contingenciamento do gás, que na prática visa conter nos estoques o máximo possível do combustível para se antever à pressão da demanda que ocorrerá no inverno. Com a flutuação da demanda para cima, se criaria pressões sobre outras fontes energéticas, o que poderia desencadear maiores dificuldades para o controle da inflação. Portanto, é estratégico para o bloco europeu que seus integrantes juntem forças num mesmo sentido, sabendo da emergência em relação ao setor energético e da gravidade que se encontra a situação do gás e de suas possíveis consequências sobre a inflação. Agir de modo sincronizado, portanto, será vital não só para o equilíbrio econômico do bloco, mas para a resolução de boa parte dos desafios climáticos que as nações (não só europeias) enfrentarão nas próximas décadas.

Foto de encanamento de gás com fundo de duas bandeiras, União Europeia e Rússia.

Não se pode perder de vista que tais desafios exigem respostas coordenadas dos países, tomando os Estados a dianteira de tais processos. Reforça-se assim a lição passada pelos antigos economistas que compreendiam o fundamental papel atuante do Estado para a operacionalização e equilíbrio da economia (e isso, evidentemente, inclui o mercado): princípio este que é inviável sob o prisma liberal, onde se repousa a confiança no mercado como protagonista na solução de eventuais crises. As medidas tomadas pelos principais países do bloco europeu sugerem um novo ciclo na política econômica, principalmente no que toca a questão energética, setor caracterizado pelo perfil predominantemente monopolista. O governo Emmanuel Macron, por exemplo, adquiriu 100% das ações da maior empresa de energia do país, a Électricité de France (EDF), demonstrando uma relativa descrença no setor privado para a resolução de situação tão extraordinária como esta que a Europa atravessa no setor energético.


O gás e os Estados Unidos


Enquanto os países da Europa se movimentam para atenuar os efeitos da falta do gás (e do petróleo), os Estados Unidos também atuam para evitar uma deterioração da situação energética no país. Apesar da promessa de campanha de manter a Arábia Saudita na condição de pária internacional por conta das constantes violações de direitos humanos, a visita do presidente Joe Biden ao país árabe no mês passado, onde se encontrou com o príncipe herdeiro Mohamed Bin Sauman, acusado de ordenar o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, demonstra as prioridades estadunidenses, ou seja, a questão energética sobrepondo a dos direitos humanos.


Os esforços dos Estados Unidos junto aos principais produtores de petróleo do mundo surtiram efeito e já se pôde observar uma queda no preço do barril no último mês, consequência do aumento da oferta firmado com os principais membros da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Isso ocorre pois também haverá efeitos na própria economia doméstica dos Estados Unidos, dado que as sanções impostas à Rússia afetam a oferta dos derivados de petróleo no mercado estadunidense, uma vez que o óleo russo representava, até o início da guerra na Ucrânia, 8% de todo consumo dos Estados Unidos. Todas essas medidas, isto é, a pressão sobre os exportadores de petróleo para aumentar a oferta mundial, acompanhado de ações da Europa em estocar gás para se antever ao inverno do hemisfério norte, são importantes ações dos países para se prevenirem à uma eventual crise energética generalizada, com potencial de prejudicar sensivelmente os preços.


Inflação e consequências econômicas


A inflação, por sua vez, já anda fortemente instável e atualmente se encontra em patamares comparáveis ao início dos anos 1980, quando o mundo lidava com as consequências das seguidas altas dos juros por parte do Federal Reserve (banco central estadunidense), que a época visava conter a escalada dos preços em decorrência das abruptas elevações do petróleo no final da década de 1970. A leitura que se faz é que num contexto de inflação elevada como ocorre atualmente, desencadeada, sobretudo, pelos desajustes nas cadeias globais de produção em decorrência da pandemia, da guerra na Ucrânia e da consequente elevação dos preços do petróleo, a situação poderia ser agravada com a redução da oferta de gás no momento de elevação da sua demanda na Europa, esperada para o final do ano. Antever-se aos ciclos e atenuar os efeitos esperados já é prática comum nas economias mundo a fora, que tendem a não crer mais nos “superpoderes” do mercado para resolver suas questões sem a participação estatal.


A questão energética assim demonstra não se limitar ao campo estritamente mercadológico e evidencia seu caráter central nas questões geopolíticas mundo a fora. Os efeitos da energia sobre a inflação são fartamente documentados e o atual momento da economia brasileira embasa essa constatação. Após sucessivas altas históricas nos preços do mercado, o banco central brasileiro espera entre dois e três meses de deflação, isto é, de queda nos preços. Isso tudo só foi possível depois que a Petrobras reduziu o custo dos derivados (acompanhando a baixa do petróleo no mercado internacional) e da restrição feita pelo governo federal aos impostos estaduais nas bombas. Apesar disso, a política econômica do governo brasileiro, por sua vez, vai no sentido inverso das nações do norte, isto é, aposta num modelo que privilegia a atuação do mercado em detrimento do planejamento estatal, sendo a privatização da Eletrobras mais um capítulo deste processo. É importante denotar o quanto este setor é entendido indispensável tanto nas relações geopolíticas quanto para a capacidade estatal de planejar e se antever a possíveis situações desfavoráveis à economia como um todo. A crise internacional nesse setor, portanto, liga um alerta sobre os rumos da política econômica brasileira que, aparentemente, se mostra em desajuste com o que as nações desenvolvidas vêm realizando.


Texto escrito por João Vitor Bortoleto

Professor de História e Sociologia; formado em História pela USP e especialista em Humanidades pelo IF-SP. Atualmente é graduando em Ciências Econômicas pela UNIFESP e colunista do “Zero Águia”.


Fontes:


Corte no fornecimento de gás -


Eletricidade na Europa -


NordStram 2 -


Produtores de petróleo e gás -

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