O Brasil, através do Ministério da Cultura (MinC), mostra que a cultura é economia e, mais do que isso, é a base para o diálogo e a cooperação entre as nações. Confira neste artigo como foi a inclusão da cultura e seus temas, que resultaram na “Declaração de Salvador da Bahia dos Ministros da Cultura do G20”.
O G20 foi criado em 1999 e é um fórum de cooperação econômica internacional que reúne as principais economias do mundo. O objetivo é fortalecer a economia internacional e debater temas importantes para o desenvolvimento socioeconômico global.
Chefes de Estado e representantes de 18 países membros do grupo, além da União Africana e União Europeia, se reuniram nos dias 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro, na Cúpula dos Líderes do G20, tendo o Brasil como presidente rotativo.
Fazem parte do G20:
África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita,
Argentina, Austrália, Brasil, Canadá,
China, Coreia do Sul, Estados Unidos,
França, Índia, Indonésia, Itália,
Japão, México, Reino Unido,
Rússia, Turquia,
União Africana e União Europeia.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 27, a cultura é um direito como todos os outros:
“Toda pessoa tem direito de participar livremente da vida cultural da comunidade.”
Entretanto, a cultura não tinha o mesmo espaço na agenda do G20, o que começou a mudar nos últimos encontros.
Na Assembleia Geral da ONU, de 19 de dezembro de 2019, foi promulgado a Resolução 74/230, que versa sobre cultura e desenvolvimento sustentável. Na mesma Assembleia, foi declarado o ano de 2021 como Ano Internacional da Economia Criativa para o Desenvolvimento Sustentável.
Desde 2020, os países integrantes do G20 passaram a dar mais atenção aos debates sobre a importância da cultura na construção das relações internacionais, a capacidade de promover mais respeito entre os povos, além de maior inclusão e desenvolvimento sustentável.
Declaração de Roma
Uma prova da importância da cultura no centro de poder global é a Declaração de Roma dos Ministros da Cultura do G20 (2021), que integra a cultura nas perspectivas de trabalho do grupo, com uma visão multidisciplinar, o que coloca o tema de forma transversal nas discussões sobre economia, trabalho, meio ambiente, tecnologia e educação, etc.
Na Declaração de Roma, foram estabelecidos alguns princípios norteadores, onde há entendimento dos setores culturais e criativos como impulsionadores da regeneração e do crescimento sustentável e equilibrado. É importante relembrar que estas decisões foram tomadas no período ainda agudo da COVID-19, sendo o setor cultural um dos mais afetados pelo colapso sanitário global.
Se destacam também na Declaração, temas como a proteção do patrimônio cultural, a abordagem da cultura para lidar com as mudanças climáticas, capacitação por meio de treinamento e educação, e a transição digital e novas tecnologias para a cultura.
Declaração de Nova Delhi
Em 9 de setembro de 2023, o Grupo dos G20 aprovou a Declaração de Líderes com uma inserção mais forte da cultura nos compromissos de políticas dos países membros.
No parágrafo denominado “Cultura como Condutor de Transformação dos ODS”, o Grupo de Trabalho de Cultura, que teve a UNESCO como Parceira de Conhecimento, conseguiu um reconhecimento dos países da importância do retorno de bens culturais aos países de origem, reforçando a Convenção da Unesco de 1970.
Na reunião dos Ministros da Cultura daquele ano, foi assinado um documento intitulado “Kashi Culture Pathway”, sendo um conjunto de compromissos dos países para possibilitar o retorno e a restituição dos bens culturais como um imperativo ético da justiça social, a valorização da contribuição das comunidades locais e dos patrimônios vivos para o desenvolvimento sustentável, o investimento em indústrias culturais e criativas, e a utilização da transformação digital para proteger e promover a cultura.
O Manto Tupinambá é apenas um dos inúmeros exemplos dessa mudança de paradigma na cultura e nas relações internacionais. O artefato indígena é considerado sagrado e foi levado à Europa em 1644, permanecendo exposto no Museu da Dinamarca até julho de 2024, quando foi repatriado. Na cerimônia do retorno, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reforçou a importância do fato:
“O momento de hoje é sumamente extraordinário para que a gente reflita sobre o que acontece no nosso Brasil, desde a descoberta deste país, com os povos indígenas. O retorno do Manto para o Brasil representa a retomada de uma história que foi apagada, uma história que precisa ser contada e preservada, assim como esse manto que muitos indígenas só conhecem pela memória de seus ancestrais."
A Declaração de Nova Delhi também reforça a economia criativa como um motor para o crescimento inclusivo, onde os países pediram que a cultura tenha um papel maior na agenda de desenvolvimento global pós-2030. A cooperação multilateral e o papel da cultura para resolver problemas globais contemporâneos também foram destaque no texto final.
Declaração de Salvador da Bahia dos Ministros da Cultura do G20
A 19ª reunião da cúpula do G20 finalizou com uma Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, com propostas para erradicar a fome até 2030, e também com a criação do G20 Social, que abriu espaço para a sociedade civil debater com os GTs. Mas não foi só isso. O GT de Cultura, formado pelos ministros da pasta do G20, criou um documento de referência para futuras negociações na área cultural e sua transversalidade na economia, educação e afins.
O Grupo de Trabalho de Cultura do G20 se reuniu entre 4 e 8 de novembro, em Salvador, na Bahia. Estavam presentes mais de 120 autoridades, entre eles ministros, secretários e representantes de países-membros, como Alemanha, Índia, Japão e Arábia Saudita. O texto dos debates possui diretrizes para orientar políticas culturais e ambientais globais.
A palavra-chave é integração. A Carta da Bahia é um esforço coletivo para fortalecer políticas culturais integradas ao meio ambiente, à inovação tecnológica (Inteligência Artificial e propriedade intelectual) e à preservação de patrimônios culturais nacionais.
Margareth Menezes, Ministra da Cultura, afirmou na reunião:
“Esse documento consagra valores, princípios e diretrizes construídos de forma colaborativa, reafirmando nosso compromisso com inclusão, participação social e acessibilidade para o pleno exercício dos direitos culturais.”
Indicando que o compromisso com a Carta reflete o consenso de diversas nações sobre a importância da cultura na construção de uma sociedade global mais inclusiva.
As negociações da Carta tiveram o esforço de muitas equipes negociadoras de todo o país, reforçando a importância da cultura na renovação do sistema multilateral, uma base para o diálogo e a cooperação entre os países. Isso fica notório na Declaração dos Líderes do G20 do Rio de Janeiro, em parágrafo específico:
“Nós reconhecemos o poder e o valor intrínseco da cultura no fomento à solidariedade, ao diálogo, à colaboração e à cooperação, promovendo um mundo mais sustentável, em todas as suas dimensões e de todas as perspectivas. Comprometemo-nos com os princípios de inclusão, participação social e acessibilidade, para o pleno exercício dos direitos culturais, enfrentando o racismo, a discriminação e o preconceito, e fazemos um apelo por um engajamento global fortalecido e eficaz no debate sobre direitos autorais e direitos conexos no ambiente digital e os impactos da inteligência artificial sobre os detentores de direitos autorais. Nós encorajamos os países a aprimorarem a cooperação, a colaboração e o intercâmbio internacionais para o desenvolvimento da economia criativa. Nós reafirmamos nosso compromisso com as convenções relevantes da UNESCO. Nós reafirmamos nosso compromisso de apoiar políticas que promovam a contribuição daqueles que trabalham nos setores de cultura, artes e patrimônio e fazemos um apelo aos países para fortalecerem a cooperação e o diálogo, abordando os direitos sociais e econômicos e a liberdade artística, tanto online quanto offline, em conformidade com os marcos de direitos de propriedade intelectual e as normas internacionais de trabalho, visando à melhoria do pagamento justo e a condições de trabalho dignas. Nós encorajamos o fortalecimento da proteção do patrimônio cultural, incluindo monumentos históricos e locais religiosos. Nós fazemos um apelo pelo apoio a um diálogo aberto e inclusivo sobre o retorno e a restituição de bens culturais, incluindo bens exportados ilegalmente, com base em uma ampla perspectiva histórica que renove as relações entre os países e permita mecanismos alternativos de resolução de disputas, quando apropriado. Nós reconhecemos a crescente apreciação do valor do retorno e da restituição de bens culturais para os países e comunidades de origem, com base no consentimento entre as partes relevantes.”
(Declaração dos Líderes do G20, Rio de Janeiro, 2024)
O grupo reconheceu o crescimento do peso econômico da Economia Criativa, com o incentivo de cooperação internacional que amplia os mercados culturais e fortalece a classe artística. Temas como a acessibilidade, combate ao racismo e trabalho digno foram reforçados nessa discussão.
A transversalidade da cultura não ficou de fora de um tema delicado: o meio ambiente. No Seminário Internacional Cultura e Mudanças Climáticas, 11 painéis debateram temas como a criação de setores culturais ambientalmente responsáveis, que se preocupam com: emissões de carbono, justiça climática para artes e cultura e o poder das artes e da cultura para a mobilização social pró-clima. O Brasil copreside, ao lado dos Emirados Árabes Unidos, o Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura, e será sede da COP 30, em Belém (2025).
O diálogo aberto sobre o retorno de bens culturais e o combate ao tráfico de bens culturais ganhou continuidade, com o reforço do direito à memória e a proteção do patrimônio cultural, material e imaterial. Jerônimo Rodrigues, governador da Bahia, citou o caso do manto sagrado dos Tupinambás, item ancestral devolvido ao Brasil recentemente (2024).
A complexa relação entre tecnologia e os desafios contemporâneos foi tema das reuniões, com os impactos da inteligência artificial na diversidade cultural e nos direitos autorais. O tema precisou da persistência do Brasil nas negociações para que entrasse na agenda de forma definitiva.
Mudança importante, com atraso
Agora o Brasil passa a presidência do G20 para a África do Sul, com a inserção da cultura no topo da agenda, pela sua característica transversal e capacidade de aproximar os países. Os temas tratados pelo GT de Cultura são importantes e carecem de maior atenção pelas lideranças globais, pois a cultura é um tema fundamental na estratégia de uma solução sustentável e verdadeira.
O resultado da Carta da Bahia e a Declaração dos líderes do G20 serão, sem dúvida, bases para o próximo Mondiacult, a Conferência Mundial da Unesco sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável, a ser realizada em 2025, em Barcelona (Espanha).
Apesar da inserção da cultura na política do G20, é notório que o esforço por parte dos países do Sul global sofreu resistência, seja por parte dos países do Norte global, como por parte da própria opinião pública, que não reconhece ainda o Direito à Cultura como um direito universal.
É necessário ampliar os debates sobre o papel da cultura no desenvolvimento sustentável, bem como na busca pela paz e justiça climática. Isso só se dará com políticas públicas efetivas e a intensa participação social, reforçando a transversalidade e a multidisciplinaridade, características que fazem da cultura uma importante área de potência e não de conflito.
Por fim, o Brasil retorna aos palcos das negociações internacionais na área cultural, mostrando habilidade e pioneirismo em temas e abordagens mais criativas sobre os problemas globais. Resta saber os desdobramentos dessas discussões fora do território do Sul global.
Texto escrito por Josué Kenji
formado em Relações Internacionais, produtor cultural e pós-graduando em gestão Cultural, desenvolvimento e mercado. É co-organizador do "Festival da Criatividade Cria Bauru 2020" desde 2020, criador da "Comunidade Criativa Cria Bauru", articulador criativo da "Rede Bauru: Cidade Criativa Unesco", está membro do "Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação (2022-2024)" na cadeira de Sociedade Civil e atualmente é colunista do Portal Águia.
Revisão: Eliane Gomes
Edição: Felipe Bonsanto
REFERÊNCIAS
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