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Foto do escritorPablo Michel Magalhães

A reforma que deforma: como capotamos no ensino público brasileiro


Há anos o debate sobre um novo modelo de Ensino Médio reuniu entidades e profissionais da educação. Mas o que temos hoje está longe de atender aos anseios da sociedade.


Sala de aula

O ano era 2022 e eu iniciei minha carreira como servidor público da educação no Estado de Alagoas. Depois de anos lecionando no Ensino Superior, meu pincel e meu apagador tocariam os quadros de salas do Ensino Médio pela primeira vez. Os anseios eram os mais variados possíveis: um novo Estado, a distância de casa e da família, o vislumbre do desconhecido…


Além de tudo isso, era o princípio da implementação das mudanças da nova Base Nacional Comum Curricular, dando início ao que conhecemos como NEM, o Novo Ensino Médio.


É preciso salientar que boa parte da população brasileira sequer tinha ou tem noção do que isso significou e ainda significa na história recente da educação.


De acordo com a pesquisa do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e do Serviço Social da Indústria (SESI), 55% da população está pouco ou nada informada sobre o modelo e apenas 15% dela está informada ou muito informada.



Disciplinas tradicionais, como a História que eu leciono, tiveram a sua carga horária reduzida. No lugar delas, matérias como “RPG”, “Projeto de Vida”, “Território e turismo” e “Empreendedorismo” passaram a vigorar entre os alunos dos 1º anos, numa transição escalonada até 2024.


Sem estrutura e marcada pelo improviso, essa mudança marcou alunos e professores, principalmente pela ausência de diretrizes minimamente claras. Alguns professores, tais como os da História, Biologia e Química, por exemplo, precisaram lecionar conteúdos completamente fora de suas áreas de formação.


Ao cabo e ao fim, a frustração deu a tônica de um princípio de dores para a comunidade escolar.


Como chegamos até aqui? (não custa nada lembrar)


A educação pública brasileira, infelizmente, é um palco de disputas constantes e intensas há décadas, e mesmo a redemocratização e os subsequentes governos eleitos pelo povo não mudaram muito esse panorama. E, claro, o modelo praticado no Ensino Médio sempre foi alvo de críticas (justas e injustas) sobre sua composição e currículo.


É preciso deixar claro que, de fato, o antigo modelo de educação precisava ser revisto, mediante um amplo debate entre os setores educacionais brasileiros, envolvendo entidades de classe, gestores, coordenadores e professores em seus variados níveis de atuação.


Mas a reforma, que fizeram e aprovaram em 2017, foi uma completa palhaçada neoliberal.


É bom lembrar o contexto em que isso está inserido: vivíamos os anos do governo vampiroso de Michel Temer, o vice articulador de um golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff e instituiu uma presidência tampão, patrocinada pelo mercado financeiro e abençoada pelos partidos do Centrão.


Foi com a Medida Provisória n. 746/2016, uma decisão autoritária de cima pra baixo, que o “Novo” Ensino Médio começou a tomar forma. Com ela, Temer interrompeu um processo de debates sobre o Ensino Médio que havia se iniciado na Câmara dos Deputados ainda no ano de 2012.


Reforma no Ensino Médio

Diversas entidades da sociedade civil criticaram o uso do expediente autoritário da Medida Provisória para realizar uma reforma educacional, gerando inclusive um parecer, por parte do então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, ao Supremo Tribunal Federal, alegando que a medida era inconstitucional.



Não sei se todos se lembram, mas houve um intenso movimento de ocupações estudantis nas escolas de Ensino Médio e nas universidades públicas em diversos estados do país.


No ano de 2017, a MP 746 foi convertida na Lei 13.415/2017 e o governo de extrema direita, eleito em 2018, aliou-se à Reforma para aprovar os documentos legais que dariam sua sustentação normativa.


O resto é o que temos hoje. 2022 foi o ano base do início da transição e quem esteve metido nas salas de aula das escolas públicas do país viveu e padeceu esse processo.


A quem a reforma serve?


Ao publicar a MP, o governo Temer justificou a medida com três objetivos que seriam alcançados pela Reforma:


  1. tornar o Ensino Médio mais atrativo aos jovens, permitindo que estes possam escolher itinerários formativos diferenciados;

  2. ampliar a oferta de ensino em tempo integral; e…

  3. aumentar o aspecto profissionalizante do Ensino Médio.


Contudo, essas metas não passam de uma grande falácia.


A tal liberdade de escolha de itinerários não contempla todas as possibilidades de desenvolvimento dos alunos; o ensino em tempo integral, apesar de ser o ideal, não está relacionado com a vivência de alunos que ainda precisam escolher entre estudar e trabalhar; e o aspecto profissionalizante tem mais uma cara de sucateamento do ensino, com professores sendo obrigados a ministrar disciplinas bem distantes de sua área de formação.


Então, se o Novo Ensino Médio não serve aos estudantes, proporcionando uma formação precária e esvaziada dentro de suas próprias metas, a quem serve essa reforma?


Como disse anteriormente, Temer, com sua MP, interrompeu as discussões em torno de uma reforma consistente, com a participação de educadores e instituições realmente engajadas na construção do ensino público e abriu espaço para indivíduos do setor privado terem voz e ingerência na reforma.


Quem são? Podemos citar a mais conhecida, a organização Todos Pela Educação, cuja mantenedora é a Fundação Lemann, uma instituição criada pelo mesmo responsável pelo rombo nas Lojas Americanas, Jorge Paulo Lemann.


Há também a ingerência do Instituto Natura, parceiro do ICE (Instituto de Corresponsabilidade pela Educação), cujo presidente Marcos Magalhães teve ampla influência sobre o então ministro da educação da época, Mendonça Filho.


Dessa forma, o Plano Nacional de Educação (PNE), que definiu as bases da política educacional brasileira para até 2024, foi construído sob a violência das garras do setor privado, cuja vítima principal foi a Educação pública.


E qual o problema de estudar RPG?


Pude acompanhar algumas repercussões do NEM nas mídias digitais. Entre críticas e elogios, causaram-me certo frisson os comentários de pessoas que achavam legal que, no currículo escolar, o “RPG” fosse um dos componentes a serem estudados pelos alunos.


Particularmente, adoro jogar RPG. A sigla, que significa “Role Playing Game” (em tradução livre, jogo de interpretação de papéis), faz referência a um tipo de jogo em que as pessoas interpretam seus personagens e criam narrativas que giram em torno de um enredo.


Alunos jogando RPG
Alunos jogando RPG

Muito por isso, o RPG se tornou, há anos, uma ferramenta de ensino-aprendizagem em minhas aulas de História. De batalhas entre astecas e colonizadores espanhóis a confrontos entre as forças inimigas na 2ª Guerra Mundial, busco transformar o conteúdo em diversão e aprendizado para meus alunos.



Em suma, não tem problema nenhum com o RPG. O problema está em transformá-lo em uma disciplina formal numa grade curricular com duração de 1 ano inteiro, em detrimento de matérias tão fundamentais para a formação intelectual dos estudantes.


A reforma, no caso, serve única e exclusivamente para deformar, precarizar e esvaziar o currículo escolar das escolas públicas sob um falso verniz de avanço e modernização.


O NEM é justamente o que sua sigla significa: NEM ensina, NEM forma e NEM prepara.



Texto escrito por Pablo Michel Magalhães

Escritor, historiador e filósofo baiano. Observador atento de política, cultura e signos midiáticos. Podcaster no Historiante, onde tece críticas e constrói processos educativos. Professor da educação pública no Estado de Alagoas. Autor do livro "Olhares da cidade: cotidiano urbano e as navegações no Velho Chico" (2021).

 

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