A questão que causou mais alvoroço nos Estados Unidos estas últimas semanas tem a ver com a suspensão do direito constitucional ao aborto pela Suprema Corte do país. Isso ocorre depois de quase 50 anos de jurisprudência conquistada no famoso caso de 1973, Roe vs. Wade.
O caso Roe vs Wade
Roe v. Wade foi uma decisão histórica da Suprema Corte dos Estados Unidos, na qual a Corte decidiu que a Constituição dos Estados Unidos protege a liberdade de uma mulher escolher fazer o aborto. A decisão derrubou muitas leis federais e estaduais sobre aborto, e alimentou um debate sobre o aborto nos Estados Unidos sobre se, ou até que ponto, o aborto deveria ser legal, quem deveria decidir a legalidade do aborto e qual deve ser o papel das visões morais e religiosas na esfera política.
O caso foi trazido para a Corte por Norma McCorvey - conhecida pelo pseudônimo legal "Jane Roe" - que em 1969 engravidou de seu terceiro filho. McCorvey queria um aborto, mas ela morava no Texas, onde o procedimento era ilegal, exceto quando necessário para salvar a vida da mãe. Seus advogados, Sarah Weddington e Linda Coffee, entraram com uma ação em seu nome no tribunal federal dos EUA contra o promotor local, Henry Wade, alegando que as leis de aborto do Texas eram inconstitucionais. Um tribunal especial de três juízes do Tribunal Distrital dos EUA para o Distrito Norte do Texas ouviu o caso e decidiu em seu favor. As partes recorreram dessa decisão ao Supremo Tribunal Federal.
Em 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte emitiu uma decisão de 7 contra 2 sustentando que a Cláusula do Devido Processo da Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos fornece um "direito à privacidade" fundamental, que protege o direito de uma mulher grávida ao aborto. A Corte também considerou que o direito ao aborto não é absoluto e deve ser equilibrado com os interesses do governo de proteger a saúde da mulher e a vida pré-natal. A Corte resolveu esses interesses conflitantes anunciando um calendário trimestral de gravidez para reger todas as regulamentações de aborto nos Estados Unidos, sendo que o nos dois primeiros trimestres, nenhuma lei estadual poderia impedir uma mulher de abortar. A Corte também classificou o direito ao aborto como "fundamental", o que exigia que os tribunais avaliassem as leis de aborto contestadas sob o padrão de "escrutínio estrito", o nível mais rigoroso de revisão judicial nos Estados Unidos.
Anulação da decisão e efeitos políticos
Em 24 de junho de 2022, a Suprema Corte decidiu num voto 6 contra 3 anular Roe v. Wade. Semelhante ao que havia já vazado anteriormente na mídia, o parecer do tribunal escrito pelo juiz Alito afirmou que Roe estava "gravemente errado desde o início" e seu raciocínio "excepcionalmente fraco". Também afirmou que Roe "incendiou o debate e aprofundou a divisão" e que anular isso "devolveria a questão do aborto aos representantes eleitos do povo". A opinião da maioria baseou-se em uma visão histórica constitucional dos direitos ao aborto, dizendo: "A Constituição não faz referência ao aborto, e nenhum tal direito é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional".
Como resultado, os estados dos EUA recuperaram autonomia para passar leis sobre o assunto, o que resultará em pelo menos metade deles impondo restrições e novas regras sobre onde o aborto pode ou não ser realizado.
Além das questões de saúde pública que essas campanhas abordam e todo o debate sobre direitos reprodutivos e das mulheres, as deliberações da Suprema Corte são importantes por outros motivos: Ressaltam que a justiça não é objetiva ou puramente técnica, mas sim - e principalmente - um espaço de negociação política.
A decisão vem depois que o judiciário tem recebido uma maioria de juízes conservadores nos últimos anos, grande parte destes apontada pelo ex-presidente Donald Trump. O Supremo Tribunal, composto por nove membros, tornou-se uma área ativa de disputa, envolvendo não apenas aspectos ideológicos básicos, mas também competição partidária direta.
A anulação vem em um momento muito específico: um dia após a vitória histórica de Biden sobre o controle de armas no Congresso. O Senado dos EUA acaba de aprovar, com apoio bipartidário, uma série de medidas para limitar a venda de armas no país, além de financiar programas voltados à saúde mental e segurança escolar. Essa é uma promessa central da campanha de Biden. Boas notícias para os democratas, mas notícias perturbadoras e particularmente sensíveis para a maioria dos republicanos. Assim, a decisão sobre o aborto foi uma "coincidência" conveniente para a oposição.
Em um ano de eleições legislativas estratégicas, tudo indica que os votos serão amplamente afetados pela crise econômica do país. A inflação nos EUA atingiu um recorde. Dívida, déficit, desigualdade, perda de renda, capacidade de consumir e investir. Tudo isso constitui uma realidade há décadas e que impactou ainda mais fortemente o cotidiano das famílias norte-americanas em um mundo pós-COVID.
Uma questão de natureza multifacetada que requer estudo especializado - como o aborto - acaba virando mais uma onda que incentiva a polarização como forma de tentar despertar as paixões dos eleitores com objetivos de curto prazo. Esse tipo de discussão geralmente é muito mais complicada do que isso e envolve direitos básicos e fundamentais para as mulheres, porém mais uma vez se torna vítima de uma estratégia metódica realizada pelos conservadores para derrubar qualquer chance do tema ser ao menos discutido, em nome de uma retórica religiosa fundamentalista que vem tomando conta dos discursos republicanos pelos últimos anos.
Texto escrito por Eliézer Fernandes
Fundador do Zero Águia, é desenvolvedor de software, formado em Segurança da Informação pela FATEC e fascinado por história e relações internacionais.
Fontes:
Documentário Roe x Wade: Direitos das Mulheres nos EUA.
Comments