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Foto do escritorGustavo Longo

Central do Brasil e as raízes do país

No filme "Central do Brasil", Dora (interpretada magistralmente pela atriz Fernanda Montenegro) trabalha escrevendo cartas para analfabetos na estação Central do Brasil, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ainda que a escrevente não envie todas as cartas que escreve (por exemplo as cartas que considera inúteis ou fantasiosas demais), ela decide ajudar o menino Josué (interpretado por Vinicius de Oliveira, até então desconhecido e ex-engraxate), após sua mãe ser atropelada, a tentar encontrar o pai que nunca conheceu, no interior do Nordeste, tendo suas vidas alteradas e iniciando uma jornada de busca, descobertas e redenção.


Dora e o menino Josué são os personagens principais do filme "Central do Brasil". REPRODUÇÃO

A busca de Josué pelo pai pode ser interpretada num primeiro momento como o retorno de migrantes nordestinos para suas origens, retornando para "sua terra", representando o fluxo migratório para o Sul/Sudeste do país em busca de melhores condições de vida. Além disso, outra interpretação que podemos fazer é a procura de outro Brasil, sugerindo que os males sociais do passado poderiam ser superados e transformados numa união criativa de um país sofrido e cerceado das liberdades políticas e suas crises econômicas com um novo Brasil de esperança e oportunidades.


A empreitada da personagem Dora por seus sentimentos, representa a ruptura de um comodismo e conformismo com uma vida estagnada, tanto socialmente em relações conflituosas e de desconfiança com seus pares, quanto economicamente onde recebe uma pensão insuficiente que recebe como professora aposentada. Dora consegue, ao longo do filme, transpor barreiras e encontrar sentimentos esquecidos de; solidariedade, cuidado e amor.


O roteiro desta memorável obra cinematográfica brasileira, de 1998, dirigida por Walter Salles, produzida pela VideoFilmes e escrita por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein. Trata-se de uma obra muito reconhecida, recebendo mais de 50 prêmios e indicações importantes tanto no circuito nacional e internacional de cinema. Para se ter uma ideia, a obra arrebatou o Urso de Ouro em Berlim e recebeu indicações para Oscar, BAFTA, Globo de Ouro e César (prêmio francês). No Oscar, recebeu indicações para Melhor Filme Estrangeiro, porém perdeu para a Vida é Bela (filme italiano) e Melhor Atriz com Fernanda Montenegro sendo a primeira atriz latino-americana a participar do pleito. Para o diretor Walter Salles, o filme é definido como:


"Uma pequeníssima odisseia: um garoto em busca do pai, uma mulher à procura de seus sentimentos, um país à procura de suas raízes."


Migração e refúgio


Já foi mencionado no artigo sobre a vida em movimento que escrevi pouco tempo atrás, que segundo o manual do ACNUR (Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), temos alguns conceitos interessantes que vale reforçar:

  • Os refugiados são pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições (principalmente políticas e religiosas) com risco eminente de morte. A determinação da condição de refugiado não tem como efeito atribuir-lhe a qualidade de refugiado, mas sim constatar essa qualidade. Uma pessoa não se torna refugiado porque é reconhecida como tal, mas é reconhecida como tal porque é um refugiado.

  • Os migrantes se deslocar é uma escolha, motivada principalmente em busca de melhores oportunidades de trabalho, mais segurança, melhor educação, entre outros motivos que envolvam uma melhoria na sua qualidade de vida.

O filme "Central do Brasil" mostra a realidade do menino Josué e da professora aposentada Dora em um Brasil em transformação. REPRODUÇÃO

Embora migrantes e nômades não sejam, em termo conceituais a mesma coisa, muitas vezes os migrantes acabam se nomadizando, sendo assim, as migrações estão sendo pensadas como um vetor de desterritorialização e de nomadização.

As pessoas são movidas pelo desejo, que funciona na subjetividade de cada um como uma força motriz que o coloca em movimento, e com isso tornam-se capazes de enfrentar obstáculos, refazer caminhos, superar dor e sofrimento em torno do seu objetivo. A felicidade e novos horizontes estão lá, em algum lugar à espera deles.


Fluxos migratórios no Brasil


No Brasil, temos alguns exemplos de fluxos migratórios motivados em sua grande maioria por modelos econômicos implantados na época, sendo que no momento de esgotamento das possibilidades de uma boa qualidade de vida, seus habitantes necessitam migrar para continuar a viver.

Brasileiros na Hospedaria: "O migrante quer morar" - a presença nordestina na luta por moradia na cidade de São Paulo. Imagem: Museu da Imigração

Na primeira metade do século XX, com o início da industrialização no Brasil, se iniciou o êxodo rural para as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. A título de comparação: o Brasil era predominantemente rural na década de 40, porém trinta anos mais tarde, já era um país de maioria urbana.

Exemplo de movimentos migratórios no Brasil foram a construção de Brasília, na década de 1950, o estabelecimento da Zona Franca de Manaus (AM), nos anos 1960 e a descoberta de ouro em Serra Pelada (PA), na década de 1970.


Colonização e as raízes da sociedade brasileira


Para falarmos das raízes do país com um bom embasamento teórico, podemos recorrer a obras importantes como "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, "Casa-Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, além de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. O receio de mostrar a verdadeira identidade da sociedade brasileira influenciou os primeiros relatos históricos do Brasil, e só foi a partir de 1930 que esta narrativo começou a mudar graças a estes intelectuais que não falsearam o conceito de miscigenação e trataram seus escritos com originalidade e autenticidade.


Em "Raízes do Brasil" – publicado em 1936, posteriormente objeto de várias reedições ao longo do século XX e considerado um dos mais importantes clássicos da historiografia e da sociologia brasileira - Sérgio Buarque pontuou as negativas heranças culturais ibéricas deixadas aqui nos trópicos. O conceito de homem cordial, por exemplo, foi o principal ataque ao legado deixado pelos portugueses, esse conceito referia-se àquela pessoa que agia mais pela emoção do que pela razão. Um exemplo de cordialidade era aquele homem que para escolher entre duas pessoas para uma vaga de emprego, escolhia o candidato que fosse seu amigo ou conhecido, ao invés de optar pela meritocracia. Isso serviu, portanto, para atrasar o progresso social, político e econômico brasileiro.

Escravizados urbanos coletando água no Brasil da década de 1830. Imagem: JOHANN MORITZ RUGENDAS/SLAVERY IMAGES (BBC Brasil)

Sérgio Buarque afirmou também que, o liberalismo democrático pressupõe o trato impessoal com os governantes, algo que os brasileiros não assimilam, pois preferem a familiaridade do que a distância exigida em cargos públicos. Continua dizendo, que o Brasil só terá democracia plena quando houver uma revolução feita de baixo para cima, ou seja, da camada popular até as estruturas mais altas e que para isso também será preciso aceitar a impessoalidade da democracia e que direitos e deveres são para todos.

Por outro lado, não criticou a colonização efetuada pelos portugueses no Brasil, pelo contrário, fez um elogio à falta de orgulho de raça e à fácil adaptação dos lusitanos no território brasileiro. Porém, o que diferencia a obra de Freyre da escrita tradicional anterior a 1930 é a abordagem do processo de miscigenação do povo brasileiro. Em seu livro "Casa-Grande e Senzala", o autor afirma que foi essa falta de orgulho de raça dos portugueses que contribuiu para o sincretismo cultural e para as misturas de raças no Brasil.


Os três pilares da colonização portuguesa para Freyre são; a miscigenação, o latifúndio e a escravidão. Como cita Laurentino Gomes na sua obra "Escravidão", volume II, existem muitas Áfricas dentro do Brasil: seus traços estão por toda parte, na dança, na música, vocabulário e na culinária, nas crenças e nos costumes, na luta do dia a dia, na força, no semblante e no sorriso das pessoas.


Para Gilberto Freyre, a sociedade brasileira era o resultado da miscigenação cultural entre portugueses, indígenas e negros. Uma das teses mais polêmicas e controversas de Gilberto Freyre foi justificar a escravidão do indígena e, principalmente, do negro como “necessária” para o empreendimento colonial. O latifúndio foi a grande propriedade implantada pelos portugueses a fim de ocupar e explorar a terra. Em contraponto com a colonização inglesa nas Treze Colônias, baseada na pequena propriedade, o latifúndio no Brasil, reforçou o poder patriarcal. Por outro lado, como a terra tinha dono, isso impediu o surgimento de qualquer iniciativa empreendedora, perpetuando o modelo patriarcal e escravocrata por muito tempo no Brasil.


Finalmente, Caio Prado Junior, que em seu livro "Formação do Brasil Contemporâneo", publicado em 1942, critica profundamente os portugueses pelo seu caráter de exploração na colonização brasileira. Caio Prado, influenciado pelas teorias marxistas, debate que a função do Brasil Colônia era única e exclusivamente a de exportação dos produtos agrícolas. Por isso, ele afirma que a colonização teve um caráter predatório e os portugueses foram os protagonistas que iniciaram essa prática econômica.


Nas jornadas do garoto Josué e de Dora, temos um país à procura de suas raízes, retratado muito bem no longa. Neste ponto, podemos ressaltar como movimentos importantes da nossa história influenciaram (e influenciam) na vivência destes personagens ficcionais e de toda nossa população que foram o período colonial e legado da escravatura.


Por isso, se você quer entender a atual realidade sobre a sociedade brasileira, tenha curiosidade e gana de pesquisar mais sobre a nossa história e as linhas de influências ao longo do tempo, porque, parafraseando o poeta Tom Jobim, e encerrando este artigo: "O Brasil não é para principiantes"


Detalhes do filme


Texto escrito por Gustavo Longo

Atuante na área da tecnologia há vinte anos, conciliador, curioso, disposto e apaixonado em sempre ajudar as pessoas, além de crente no poder transformador da Educação. Nas horas vagas, busca aprender sobre mercado de ações e em descobrir curiosidades do mundo do cinema através do canal Youtube Faro Frame. Acaba de iniciar um projeto pessoal com sua esposa para viajar e "viver" como um cidadão local em cada capital brasileira por 30 dias nos próximos anos.


 

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