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Foto do escritorPablo Michel Magalhães

“Indesejáveis”: passado e presente da população em situação de rua no Brasil


A marginalização e exclusão da população de rua no país refletem uma sociedade que perpetua a violência estrutural herdada do racismo pós-abolição.


O final do século XIX no Brasil foi palco de relevantes e importantes processos de transição histórica, especialmente o marco legal do fim da escravatura, sistema de domínio, controle e exploração dos corpos da população negra no país que durou cerca de 388 anos. A conhecida Lei Áurea foi aprovada no senado imperial e outorgada por Isabel, regente do trono brasileiro, em 13 de maio.



Claro que precisamos esclarecer: a abolição não se deu por bondade da princesa e de seu pai, Pedro II, nem simbolizava a boa vontade da classe aristocrática com o povo preto brasileiro. Antes, foi fruto de décadas de resistência negra, quilombismo urbano e rural e luta abolicionista por todo o país.


E o curioso disso é que a lei assinada provou ser o oposto daquilo que a monarquia acreditava que ela seria. A abolição legal viria a encarcerar as populações negras num outro sistema de controle e opressão travestido de liberdade.


Sem políticas de integração dos ex-escravos, sem acesso à terra, trabalho ou direitos básicos, resultando em uma herança de pobreza e exclusão social que persiste até hoje, a lei levou à migração em massa para cidades. Sem poder pagar por moradias legais, muitos se estabeleceram em cortiços, quilombos ou áreas ilegais.


Entre 1902 e 1906, a demolição de cortiços forçou-os a ocupar morros próximos, num processo que conhecemos como favelização. O episódio conhecido como “bota-abaixo”, empreendido na gestão Pereira Passos no Rio de Janeiro, é um exemplo desse processo.



Sob a orientação de higienizar a cidade, o então prefeito e engenheiro Pereira Passos, que havia acompanhado de perto as reformas urbanas de Paris, promoveu políticas de reordenamento urbano com vistas a “civilizar” o centro do Rio, modernizá-lo e “limpá-lo”.



Nesse discurso racista, as populações negras que viviam nos cortiços deveriam ser expulsas por não representarem o ideal estético e sanitário que buscavam. A operação “bota-abaixo” ficou marcada pela maneira autoritária com que lidou com as milhares de pessoas prejudicadas pela perda de suas moradias e negócios.


No século XX, o rápido crescimento urbano superou a capacidade do Estado de construir habitações populares. Com salários insuficientes para moradias formais, muitos se mudaram para terrenos ilegais, próximos ao trabalho. As favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, cresceram mais rápido que o resto da cidade, mesmo com remoções nas décadas de 20 e 60.


Os indesejáveis


A prática denunciada em cidades de Santa Catarina e São Paulo, onde moradores de rua são expulsos e forçados a embarcar para outros municípios, expõe a face mais cruel de uma política de limpeza social. Municípios como Balneário Camboriú, conhecido pelo turismo de luxo, não hesitam em utilizar a força policial para remover aqueles que perturbam a "ordem" e a "estética" urbana, tratando seres humanos como lixo descartável.


Essas ações são uma continuação das políticas excludentes que marcaram o Brasil após a abolição da escravatura, como já explicamos. A vulnerabilidade dos moradores de rua, muitos dos quais são negros, é exacerbada por políticas públicas que falham em oferecer suporte digno e inclusivo. O relato de Higor de Souza, expulso de um abrigo em Sorocaba, evidencia a brutalidade dessa exclusão, onde a presença de cães e guardas municipais é uma metáfora trágica da desumanização sistemática.



Em contraste, iniciativas como a abertura de abrigos temporários no Distrito Federal durante o inverno, embora bem-intencionadas, são paliativas e insuficientes. A falta de medidas integradas e contínuas, como o acesso a cuidados de saúde e proteção contra epidemias como a dengue, demonstra a negligência estatal.


A ausência de dados específicos sobre a saúde da população de rua reforça sua invisibilidade e a carência de políticas públicas efetivas.


Uma pesquisa da Fiocruz Minas, publicada este ano, analisou o acesso da População em Situação de Rua (PSR) aos serviços de saúde e assistência social em Belo Horizonte durante a pandemia de Covid-19. Este estudo inédito traçou um panorama abrangente, mostrando que, apesar de existirem barreiras significativas, como a suspensão inicial de serviços e a desorganização dos fluxos de trabalho, houve também inovações importantes.


Entre os obstáculos enfrentados, destacam-se a suspensão temporária de programas como o Bolsa Família e a alteração no funcionamento dos CREAS, além de dificuldades na comunicação entre gestores e trabalhadores.


Os dados quantitativos mostraram que a população em situação de rua de Belo Horizonte é majoritariamente adulta, masculina e negra, com ensino fundamental incompleto. No entanto, a pandemia trouxe mudanças, como o aumento de mulheres e pessoas com maior escolaridade nas ruas. A análise qualitativa apontou que esse aumento foi atribuído à perda de empregos, incapacidade de pagar aluguel e conflitos familiares.



Durante a pandemia, medidas emergenciais, como o Acolhimento Emergencial, e ações da sociedade civil, como a Pastoral da Rua, mostraram-se cruciais. Essas iniciativas proporcionaram apoio vital, como triagem e encaminhamento de casos suspeitos de Covid-19 e apoio psicossocial.


A pesquisa ressaltou a importância de um sistema de saúde e assistência social robusto e a necessidade de desenvolver políticas públicas que melhorem o acesso da PSR aos serviços e, idealmente, tirem essas pessoas das ruas e os protejam da violência aos seus corpos. A alta nas denúncias de violência contra pessoas em situação de rua, impulsionada pela criação de canais específicos de denúncia, revela a gravidade da situação e a necessidade urgente de ações concretas.


Os casos aumentaram em 24% entre janeiro e abril deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo um levantamento do ministério. Por meio de denúncias no “Disque 100”, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou 6.177 violações contra essa parcela da população. No mesmo período do ano passado, foram registradas 4.962 denúncias.


A narrativa midiática


Nesse cenário, a mídia online não apenas perpetua preconceitos como também reforça uma visão desumanizante desses indivíduos, como evidenciado em estudos recentes. O uso de linguagem que os associa a "corpos torturáveis" revela a herança de uma subalternidade imposta, onde a sociedade civil aceita passivamente o "holocausto diário" das grandes cidades.


A análise de 450 textos da Folha de São Paulo, feita pelas pesquisadoras Viviane de Melo Resende e Daniele Gruppi de Mendonça, entre 2011 e 2013 revela o viés dominante: as vozes das pessoas em situação de rua são minimizadas.


De acordo com Resende e Mendonça, a representação é frequentemente negativa, com termos como "perigosas" e "indesejáveis" referindo-se às pessoas em situação de rua. As pessoas em situação de rua foram majoritariamente referidas de forma coletiva, com 297 referências, enquanto as individuais somaram apenas 54. Isso revela que as referências de forma genérica, sem identificar as pessoas, reforçam a perspectiva desumanizante das matérias.

Foto: Capa do jornal Folha de São Paulo


Termos pejorativos como "bando" e "mendigo" foram comuns ao longo das reportagens analisadas, reforçando a visão negativa das pessoas. A representação da população em situação de rua como um problema de segurança, e não como uma questão social, também foi frequente.


O estudo conclui que a cobertura da FSP sobre a PSR é majoritariamente negativa e reforça estereótipos, contribuindo para a marginalização desse grupo. As avaliações depreciativas justificam ações higienistas e políticas de remoção, em vez de promover o acesso a direitos sociais




Assim, a mídia não apenas falha em dar voz aos marginalizados, mas também contribui ativamente para a perpetuação de estereótipos que justificam políticas securitárias, em detrimento de políticas sociais mais humanitárias e inclusivas.



Texto escrito por Pablo Michel Magalhães

Escritor, historiador e filósofo baiano. Observador atento de política, cultura e signos midiáticos. Podcaster no Historiante, onde tece críticas e constrói processos educativos. Professor da educação pública no Estado de Alagoas. Autor do livro "Olhares da cidade: cotidiano urbano e as navegações no Velho Chico" (2021).





Revisão por Eliane Gomes

Edição por Felipe Bonsanto

 

REFERÊNCIAS










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