Este artigo pertence ao dossiê "Língua portuguesa" - Artigo 2
No artigo anterior, falamos sobre a importância de aprender Português na Costa Rica: empregos, ótima relação entre os países, turismo, e muito mais. Agora, quando falamos em aprender um novo idioma, sempre pensamos nas dificuldades de se adaptar com outra língua, os desafios de aprender algo novo, tempo para estudar, e outras “barreiras”.
A grande pergunta deste artigo é:
Você realmente acha difícil aprender um novo idioma, por todos os pontos descritos acima?
Então, hoje te apresento o Henry: surfista, antropólogo, palestrante e trilíngue.
Ah, e deficiente visual.
A história de Henry com a Língua Portuguesa
Hoje iremos falar sobre Henry Martinez Hernandez, um rapaz de 27 anos, antropólogo graduado, que trabalha no Ministério da Cultura e Juventude na Costa Rica. Começou o curso de Biologia, mas trancou o curso, pois “agora não dá dinheiro”, de acordo com suas próprias palavras. Começou a ter interesse por idiomas porque se considera um “fofoqueiro” e gosta de falar com outras pessoas, conhecer coisas e pessoas de outros lugares.
Os pais sempre o incentivaram a estudar inglês, mas ele não gostava muito. De qualquer maneira estudou pois sabia que seria muito bom pro seu futuro. Henry sempre foi muito incentivado em sua casa a estudar, e sempre gostou de gramática. “Com português foi amor à primeira ‘ouvida’”, diz Henry quando lhe pergunto sobre seu interesse em nosso idioma. “Sou fofoqueiro e amo novelas”, diz em um português muito bonito, com sotaque carioca.
Na Costa Rica existe um canal de TV que passava, e passa ainda, muitas novelas brasileiras. Ele escutava as músicas dessas novelas, e sua mãe lhe dizia que os atores mexiam a boca diferente dos falantes de espanhol. Um outro canal chamado Infinito, da TV a cabo, tinha dublagens em espanhol e português, e ele tentava entender.
Nesse tempo, já que a internet não era algo tão acessível à população, ele pedia para a mãe ler o Atlas para ele. Henry, muito curioso, pedia para falar sobre o Brasil. Quando já estava na Universidade, lutou muito para ter aulas de português. No local, lecionava Português Básico, precisava tirar notas muito altas e ter o horário de acordo com as lições para poder frequentar as aulas.
Na faculdade, depois de tanto estudar português em casa por conta própria, começou a nomear verbos e tudo o mais, “depois disso, o português virou uma obsessão”, diz ele rindo, divertindo-se. Depois dos níveis básicos que estudou na Universidade, continuou estudando português sozinho.
“Minha maior conquista foi assinar Globoplay pra ver novelas brasileiras, com a ajuda de uma amiga que mora nos EUA.”
Henry, o surfista
Henry Martinez é surfista, na modalidade Parasurf (para surfistas com algum tipo de deficiência), e o fato de falar português o ajudou muito nos campeonatos mundiais, já que sempre se encontra surfistas brasileiros e consegue falar muito bem.
“Eu já me sentia muito melhor (em falar com os surfistas brasileiros e ser entendido), isso foi muito bom”, diz Henry. “Eu queria saber como era a vida no Brasil, e principalmente a vida das pessoas com deficiência no país.”
Henry inclusive já deu uma palestra no TedX Pura Vida, sobre como surfar sendo cego.
Ele acha muito bom surfar em suas condições, já que sente as ondas de uma maneira diferente. Ele surfa com um instrutor, mas o homem não toca na sua prancha, somente lhe dá as direções.
“Eu não gostava de esportes, mas vi que era uma oportunidade de falar para as outras pessoas que elas podem fazer o que elas quiserem, e claro, se elas têm um time que possa ajudá-las. Não é verdade que tudo está na mente, todos precisamos de ajuda.”
Falando sobre gostar de inspirar pessoas, mas também refutando a ideia de que todos podem fazer tudo sem nenhuma ajuda ou somente apoiados na famosa frase querer é poder.
“A satisfação de saber que estamos ajudando e incentivando as outras pessoas até acaba com o frio da água quando estou surfando.”
Para ele, surf e português tem tudo a ver, pois tem muitos comentaristas brasileiros, e na visão de Henry.
“São ótimos comentaristas, melhores do que os dos Estados Unidos.”
Um dos campeões do mundo de Parasurf é brasileiro, cego, e o outro é espanhol.
“Eu consegui falar com eles , pedir conselhos, porque eles já surfavam antes de serem cegos.”
Um jovem desafiando a sua condição
“Ser deficiente é o castigo do vilão, ficar na cadeira de rodas”
Fala o jovem sobre como os deficientes são retratados nas novelas. Claro que hoje em dia está melhor, tem uma novela da Globo com uma protagonista cega.
Henry não nasceu cego, como ele mesmo se autodenomina. Ele se tornou deficiente visual aos 2 anos de idade.
“Se hoje eu voltasse a enxergar, eu não saberia o que fazer.”
Conta o rapaz, rindo muito imaginando a situação.
Às vezes as pessoas tentam ajudá-lo a atravessar a rua, apesar de não precisar. Um certo dia, um homem lhe disse que logo Deus iria lhe dar uma visão. Henry fala que espera que isso não aconteça quando ele estiver surfando ou atravessando a rua, senão poderia morrer. Mais uma vez, fala isso de uma maneira muito divertida. Notamos como Henry leva a vida de uma forma muito suave.
“Eu já nasci com direitos (...) porque as leis para os deficientes visuais começaram uns meses antes de eu ter nascido”,
Henry fala muito orgulhoso sobre esse fato. Inclusive falando sobre a sua mãe, uma mulher que desafiou a sociedade com a educação do menino.
“A minha mãe é muito corajosa, muito legal, ela me levou para uma escola de ensino especial, mas quando eu fiz 5 anos, ela queria me levar para a escola de ensino regular.”
Ela na realidade o deixava na escola, mas não o deixava sozinho. Ela dizia a Henry que não estava lá, mas mal ele sabia. Lá estava a mulher, presente, olhando-o pela janela da classe. As outras mães ficavam lá ao lado dos filhos na escola de ensino especial, mas ela ficava observando de longe, para o menino aprender a ser independente.
“Eu aprendi braille com 3 anos porque minha mãe quis. Quando eu entrei na escola regular, eu já sabia ler e escrever em braille. Minha mãe fez eu aprender a escrever como você, a escrever graficamente, e eu escrevia em letras grandes e fortes, passava a mão para entender.”
Diz Henry sobre os desafios de entender a escrita.
“Minha mãe era uma mulher à frente do seu tempo. Ela me fez fazer muito mais esforço do que tinha que fazer, e isso rendeu frutos”
“Ela fala que devia me deixar com algemas (me prender) porque eu não paro em casa. Eu fiz o Celpe Bras (exame internacional de proficiência em português), foi um desafio muito grande, pois eu não lia e escrevia em braille há muito tempo. Foi realmente desafiador, porque eu não sabia em braille os acentos em português.”
Ressalta Henry sobre as dificuldades do exame. A prova foi toda em braille, mesmo hoje em dia tendo leitor visual. Algo antiquado demais, na visão do rapaz.
“Mesmo assim foi bom ler de novo com as minhas mãos e conhecer as palavras escritas, já que quando lemos como o leitor de tela, as palavras têm som; agora em braille, você vê as palavras com os dedos, aí vemos que elas têm outra dimensão.”
Henry fez o Celpe porque quer fazer um mestrado no Brasil.
Ele está analisando as possibilidades de fazer o mestrado de Antropologia na Universidade de São Paulo (USP), na Unicamp, em Campinas, em Pelotas, no Sul, e em Uberlândia. Dado interessante: na Unicamp, a bolsa é dada pela OEA (Organização dos Estados Americanos).
Uma forma diferente de entender a Língua Portuguesa
Nas aulas, não tinha como mostrar as letras que tinha dúvida, pois não as via. Dessa forma, tinha que prestar muito mais atenção. Como já está muito acostumado a escutar, sente que é mais “fácil” aprender algumas letras e fonéticas, já que não tem a informação visual, e sim o som direto.
“Ah, mas por exemplo, algo que foi muito difícil pra mim, e é até hoje, são os tipos de cabelo. Como ‘ah meu cabelo é comprido’ mas as pessoas falavam isso e eu não tinha a oportunidade de enxergar o cabelo.”
Fala o rapaz sobre algumas dificuldades em certos temas na língua. Ou seja, para ele, existe também a parte boa, de entender as letras como se escuta.
“A nossa sociedade é muito visual, por exemplo existem muitas palavras para cores, mas não existe as palavras para cheiro. Mas faz parte da vida, é assim.”
Dica: inspire e se inspire
“Eu acho que nós, as pessoas cegas ou com baixa visão, já temos a vida toda aprendendo o idioma das pessoas que enxergam. Eu tenho que aprender a língua das cores, tem que lembrar a cor dos prédios, para andar pela cidade, tem que aprender a usar as cores nas roupas, tem que aprender as cores do semáforo, aprender como comer, para que as outras pessoas não se sintam mal ao seu lado. Temos que usar ao nosso favor o ouvido que temos, não tem nada impossível pra nós se temos as ferramentas, o apoio, claro, e a vontade. E eu sempre falo que tem que aprender algo que você goste. E vocês que enxergam, também podem aprender com a gente, como enxergamos e entendemos as coisas.”
Texto escrito por Caroline Prado
Professora de Cultura Brasileira e Português para Estrangeiros, internacionalista, estudante de Filologia e Línguas Latinas, Embaixadora do Projeto Libertas Brasil na Costa Rica, apaixonada por plantas, livros e fontes confiáveis.
Revisão por Eliézer Fernandes
Edição por Felipe Bonsanto
Maravilhoso artigo. Parabéns, querida Caroline Prado. Mais uma das suas publicações que chega às minhas mãos no momento certo. Tema muito útil, rico em dicas, realidades e humanidade. Não posso deixar de agradecer ao destino e suas oportunidades, pois neste momento estou no processo de adaptar e preparar material para uma aluna deficiente visual. Minha admiração e respeito tanto para você, quanto para o Henry Martinez. Confio e peço a Deus muito sucesso para os dois. Obrigada e, abraços. Gladys Delgado Cervantes. Professora do Programa de Idiomas, Universidad Técnica Nacional (UTN), Sede Central, Alajuela.