O racismo estrutural, evidenciado por casos como os assassinatos de George Floyd e Frank Tyson, ressoa nas narrativas ficcionais que exploram suas consequências devastadoras, como no episódio “Replay” da série "The Twilight Zone" e na série "Them". Essas obras denunciam o terror racial diário e desafiam a persistência do racismo na sociedade contemporânea.
A notícia parece ser uma repetição: um homem negro foi morto em uma abordagem da polícia dos Estados Unidos. Com um joelho sobre o pescoço da vítima, um policial branco realiza um procedimento dito “padrão” de imobilização de um suposto suspeito. Durante esse ato, o homem negro, subjugado, sussura sem ar. Ele não consegue respirar.
Não demora muito e ele morre.
Em 25 de maio de 2020, George Floyd faleceu em Minneapolis, Minnesota.
Isso ocorreu depois que Derek Chauvin, um policial branco, pressionou o joelho no pescoço de Floyd por 8 minutos e 46 segundos, levando à sua morte. Floyd estava algemado de bruços na rua, enquanto outros dois oficiais o contiveram ainda mais e um quarto impediu os espectadores de intervir.
Durante os últimos três minutos, Floyd permaneceu imóvel e sem pulso, mas os policiais não fizeram nenhuma tentativa de revivê-lo. Chauvin continuou a manter o joelho sobre o pescoço de Floyd mesmo quando técnicos médicos de emergência tentavam tratá-lo. A autópsia oficial concluiu que a morte foi causada por parada cardíaca.
Em 2024, Frank Tyson foi sufocado até a morte, da mesma maneira. O homem, de 53 anos, tentou alertar sobre sua falta de ar. Suas palavras saíam em sussurros enquanto o joelho do policial impedia sua respiração. A gravação feita por câmera no uniforme dos oficiais responsáveis pela abordagem mostra o momento em que, imóvel, Tyson falece.
A lista de pessoas negras submetidas a este tratamento, se fizéssemos, não caberia num livro memorial com 2 mil páginas. A permanência do racismo estrutural na sociedade norte-americana ultrapassa as centenas de anos, numa cultura de violência aos corpos negros avassaladora.
Essa trágica realidade, evidenciada pela repetição de casos como o assassinato de George Floyd e Frank Tyson, ecoa nas narrativas ficcionais que exploram as consequências devastadoras desse problema, especialmente a gama de produções
realizadas por pessoas negras. Estas narrativas evidenciam, sob diversas formas e estilos, o terror racial cotidiano que permeia este conflito.
Replay: quando o racismo tenta fechar todos os meios de saída
A temporada de 2019 de "The Twilight Zone" foi, realmente, impactante. Produzida pelo aclamado Jordan Peele, diretor de "Corra!" e "Nós", a série é uma continuação da versão clássica dos anos 1950, concebida por Rod Serling, conhecida por sua narrativa que transita entre o real e o fictício, com uma crítica social perspicaz.
Todos os episódios são excelentes, mas "Replay", o terceiro, dirigido por Gerard McMurray e escrito por Selwyn Seyfu Hinds, traz uma profunda reflexão sobre o racismo estrutural na sociedade americana.
A trama acompanha dois personagens principais: Nina Harrison, uma mulher negra independente que alcançou o sucesso ao deixar sua família por discordâncias, e seu filho Dorian Harrison, um jovem à beira da universidade. Durante uma viagem, Nina descobre que a filmadora em suas mãos pode rebobinar não apenas a fita, mas o tempo. Esse artifício se torna crucial quando eles são implacavelmente perseguidos pelo oficial Christopher Lasky.
Independentemente do caminho escolhido ou da atitude tomada, mãe e filho sempre são abordados pelo policial branco, e algo ruim acontece com um deles. Mesmo ao usar a capacidade de voltar no tempo e tomar decisões diferentes, Lasky continua a aparecer, e os desdobramentos continuam adversos.
A narrativa, aliada a elementos visuais como a frase "black lives matter" em pôsteres e paredes, segue uma linha semelhante ao curta-metragem vencedor do Oscar "Dois Estranhos" (dirigido por Travon Free e Martin Desmond Roe). Neste filme, um jovem negro preso num looping temporal é perseguido por um policial branco. Como em "Replay", não importa a atitude adotada, o desfecho é sempre o mesmo: o jovem é preso ou morto pelo policial.
A mensagem é clara: a população negra muitas vezes se sente sem saída diante do racismo estrutural, resultando em consequências devastadoras para o futuro e as vidas de jovens negros.
Entre as obras mencionadas, "Replay" se destaca ao levantar a bandeira da resistência. Nas mãos de Nina, a filmadora torna-se não apenas uma máquina do tempo, mas uma ferramenta para desafiar o ciclo quase interminável do racismo.
Os fantasmas do racismo em Them, de Little Marvin
As consequências materiais que o racismo pode trazer para a sociedade são numerosas. Porém, e talvez este seja um aspecto negligenciado (ou mesmo ignorado por grande parte das pessoas), a consequência emocional e mental, individualmente falando, pode ser ainda mais destrutiva. É sobre isso que a série Them, da Amazon Prime Video, trata.
A narrativa da primeira temporada, lançada em 2021, acompanha a saga da família negra Emory em busca de um novo lar, saindo da Carolina do Norte, em 1953, onde as leis segregacionistas ainda estavam em vigência. Seu destino é Compton, na Califórnia.
As leis a que nos referimos eram apelidadas à época de “Jim Crow” ou “leis de Jim Crow”, uma referência a um personagem da comédia norte-americana do século XIX, criado pelo artista Thomas D. Rice, que ridicularizava a população afro-americana por meio de estereótipos. Inclusive este mesmo Rice (conhecido em sua época como Daddy Rice) foi pioneiro no chamado “blackface”, humor racista que explorava a população negra como matéria de piada.
Estas leis davam conta da separação de negros e brancos em espaços públicos e privados, reservando de modo desigual serviços como educação, saúde, transporte, lazer, etc. Sempre, sem exceção, os afro-americanos ficavam com a pior parte.
Retornando à série: uma vez em Compton, a família Emory vai descobrir que o sonho de um novo lar vai se tornar um pesadelo. O condomínio em que adquiriram a casa é predominantemente ocupado por famílias brancas hostis à presença de negros, com um histórico terrível de violência a famílias negras anteriores.
A partir daí, a realidade se mistura com a ilusão: a hostilidade, a violência e o medo alimentam os fantasmas particulares dos membros da família Emory, que os atormentam em diversos aspectos, como religiosidade, aceitação social e opressão estrutural.
A segunda temporada (Them: the scare), disponível desde 25 de abril deste ano, no Prime, dá sequência à história, dando um salto até o início dos anos 1990. Acompanhamos a investigação realizada pela detetive Dawn Reeve sobre o estranho assassinato de uma mãe adotiva, ocorrido em Los Angeles.
Aos poucos, Dawn descobre que o caso possui explicações que fogem da normalidade, enquanto outros assassinatos continuam ocorrendo, com a mesma brutalidade do primeiro.
O terror racial é entretenimento?
De jeito nenhum!
As narrativas de série apresentadas neste texto não são simples ficção para passar o tempo. Elas provocam discussões, destacam problemas e revelam as contradições do racismo estrutural, demonstrando que a luta antirracista está longe de acabar.
Ao assisti-las, eu, homem branco, sinto arrepios. Nunca poderei realmente entender o que as pessoas negras enfrentam sob uma estrutura opressora e excludente. O que me cabe é o papel de professor de História antirracista, com a obrigação e o dever de praticar uma educação libertadora.
Little Marvin, Gerard McMurray e Selwyn Seyfu Hinds utilizam suas habilidades narrativas para ilustrar os impactos que anos de história de escravidão e violência racial tiveram sobre os afrodescendentes.
Neste terror real, o verdadeiro demônio aterrorizante e que precisa ser combatido é o racismo estrutural.
Texto escrito por Pablo Michel Magalhães
Escritor, historiador e filósofo baiano. Observador atento de política, cultura e signos midiáticos. Podcaster no Historiante, onde tece críticas e constrói processos educativos. Professor da educação pública no Estado de Alagoas. Autor do livro "Olhares da cidade: cotidiano urbano e as navegações no Velho Chico" (2021).
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Felipe Bonsanto
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