Nessa última semana, tive a oportunidade de assistir uma série da Netflix que está sendo bastante comentada, Bebê Rena (Baby Reindeer), escrita pelo comediante Richard Gadd. Na série, Richard interpreta a si mesmo com um nome fictício (Donny) e conta suas desventuras numa época em que foi perseguido e assediado por uma mulher chamada Martha (interpretada por Jessica Gunning).
Após assistir a série, pude perceber que este tema é pouco debatido ainda na mídia tradicional, e raramente as investigações da polícia conseguem efetuar a prisão dos perseguidores (chamados em inglês de stalkers). Mas o que causa esse comportamento nas pessoas? Por que é tão difícil comprovar um crime nesses casos? Neste artigo vou detalhar algumas informações sobre esse tema, tentando elucidar as possíveis razões por trás dessas perseguições.
Erotomania ou Síndrome de Clérambault
A síndrome de Clérambault, ou erotomania, é descrita como uma convicção delirante, apresentada, geralmente, por uma mulher que acredita que um homem, mais velho e de posição social mais elevada, ama-a. O paciente persegue o objeto de amor e, por isso, eventualmente, envolve-se em retaliações e ameaças em resposta às repetidas rejeições.
Relatos dos séculos 17 e 18 descreveram as chamadas "variantes" do amor patológico, tais como a ninfomania (furor uterinus), a erotomania (amor insanus) e a melancolia erótica. Durante toda a história, existiram muitas discordâncias entre diversos autores, médicos ou não, a respeito dos comportamentos de alguns apaixonados ou amantes. Frequentemente, os termos paixão e loucura eram usados simultaneamente e com os significados mais diversos.
No século 19, Emil Kraepelin, em sua obra "Maniac-Depressive Insanity and Paranoia"("Insanidade Maníaco-Depressiva e Paranóia"), discutiu os limites entre diferentes condições psiquiátricas, incluindo a paranóia, na qual a erotomania foi considerada um subtipo. Gaëtan Gatian de Clérambault, em 1921, descreveu a erotomania como uma condição na qual um indivíduo, geralmente uma mulher, acredita ser amado por alguém de posição social proeminente. O paciente tende a insistir nesse amor, interpretando sinais, gestos e até mesmo negativas como confirmação do sentimento.
A incidência da erotomania é pouco definida, mas estima-se que afete cerca de 0,3% da população. Ela ocorre em mulheres e homens, em diversas culturas e contextos socioeconômicos. A influência da hereditariedade não é clara devido à escassez de casos relatados. A erotomania pode ser classificada em primária, sem associação a outros transtornos, e secundária, que geralmente ocorre junto com outras desordens psiquiátricas. Na literatura médica brasileira, a erotomania é pouco discutida e subdiagnosticada, contribuindo para sua cronicidade.
Tendo em vistas as descrições acima, é possível identificar a personagem da série Bebê Rena, Martha, como portadora da síndrome de Clérambault, pois seu comportamento corresponde às definições do distúrbio, como acreditar em um amor imaginário e a insistência nesse amor mesmo com as repetidas negativas de Donny sobre a relação.
Investigação do crime de stalking
Apesar de a prática de perseguição, o chamado stalking, ter sido incluída no Código Penal, a vítima ainda encontra muita dificuldade para que o crime seja investigado quando a autoria não está evidente. Isso acontece porque o stalking é um crime de ação penal pública condicionada, ou seja, o caso só será investigado se a vítima manifestar sua vontade de representar contra o autor.
Há também falta de consciência e treinamento. Muitos agentes da lei podem não estar familiarizados com as leis específicas relacionadas ao stalking e podem não receber treinamento adequado para lidar com esses casos.
Provar o stalking pode ser difícil, pois muitas vezes ocorre de formas sutis e persistentes, como mensagens constantes, monitoramento online e presença física constante, o que pode ser difícil de documentar e provar.
Algumas autoridades e indivíduos podem minimizar o crime, vendo-o como um comportamento inconveniente, mas não necessariamente perigoso. No entanto, o stalking pode ter sérias consequências para a saúde mental e física da vítima. As vítimas às vezes enfrentam estigma social e podem ser culpabilizadas pelo assédio que estão sofrendo, o que pode levar à subnotificação e à falta de apoio adequado.
Em muitos países, incluindo o Brasil, os recursos da aplicação da lei podem ser priorizados para crimes considerados mais graves, como violência doméstica, crimes sexuais e homicídios, deixando o stalking em segundo plano.
Há também o fato da mídia tradicional muitas vezes não abordar o crime com a seriedade e a frequência necessárias para aumentar a conscientização sobre o problema e destacar sua gravidade. Um exemplo é o caso da stalker Kawara Welch, uma mulher brasileira de 23 anos que é acusada de perseguir um médico e sua família por cinco anos. Nas manchetes e artigos publicados na internet, é possível ver matérias que tiram a seriedade do tema e colocam a criminosa como “celebridade”, influenciando a opinião pública em favor da agressora.
Esses fatores combinados contribuem para a subestimação do stalking como um crime sério e para sua falta de visibilidade na mídia tradicional e na aplicação da lei. No entanto, há um crescente reconhecimento da importância de abordar este crime de maneira mais eficaz, tanto por meio da legislação quanto da conscientização pública.
Texto escrito por Eliézer Fernandes
Fundador e editor-chefe do Portal Águia, é desenvolvedor de software, podcaster, formado em Segurança da Informação pela FATEC e fascinado por história e relações internacionais.
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Eliézer Fernandes
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