As fronteiras geográficas são limites políticos e demográficos que surgiram ao longo da história da humanidade, oriundas de inúmeras guerras, secas, desastres naturais e processos de dominação entre pequenos e grandes principados, até a constituição do que chamamos atualmente de Estado-nação.
O conceito de Estado-nação nasceu na Europa, já no final do século XVIII e início do século XIX, e transformou o curso da história, pois a partir dali houve uma mudança no entendimento do que conhecemos hoje como os Estados soberanos e controle de fronteiras, sejam elas terrestres, marítimas ou aéreas. Também à partir daí surgiram as regras normativas que regem estes Estados e toda sua população dentro do seu território, e as pessoas que nascem dentro deste território são os seus nacionais, e é dever do Estado protegê-las dentro ou fora dele. Isto posto, podemos começar este artigo.
O advento da Internet, sistema global de redes de computadores interligados, já na década de 1990 possibilitou a aproximação de pessoas espalhadas em diversas partes do mundo, tornando-o cada vez mais interligado. Se de um lado, isso possibilitou maior interação e democratização da informação e comunicação para os usuários, de outro, surgiram problemas de fiscalização, controle e mapeamento desse sistema, consequentemente a tornando também um palco perfeito para variados fins entre eles facilitar a rede para o tráfico de pessoas em todo o mundo, crime transnacional que não se limita a fronteiras, nem mesmo nacionalidade.
A dificuldade no diagnóstico e prevenção ao Tráfico de Pessoas
Proponho que você a partir deste momento em que lê este artigo mude ocasionalmente sua percepção, que entenda que uma pessoa, como é vista pelos criminosos, deixa de ser um ser humano pleno dos seus direitos mais elementares e passa a ser vista como um produto que pode ser vastamente explorado e rentabilizado para os fins mais obscuros, diversos e degradantes que a capacidade humana conseguiria chegar ou imaginar.
Pensar no tráfico de pessoas sem a interpretação capitalista que advém das suas engrenagens pode dificultar o entendimento sobre seu funcionamento e objetivo, pois existe em todas as suas formas a visão do “ganho” com a exploração da vítima, podendo ser financeira, física e/ou emocional, oriunda da objetificação de outra pessoa, vista sempre como frágil e inferior sob vários aspectos sobretudo pela sua situação de desproteção e dependência, o que lhe garante uma posição de poder perante toda a situação e vítima.
Há uma visão amplamente divulgada de que a pessoa traficada está somente em cárcere privado e sem nenhuma forma física de sair daquela situação, o que acontece em alguns casos, mas as engrenagens do tráfico de pessoas são mais complexas. Em alguns casos há "liberdade" de ir e vir da vítima, mas a intimidação é psicológica, por isso, quando a vítima procura o poder público ela não é facilmente identificada pelas autoridades.
O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, conhecido apenas como Protocolo de Palermo, esclarece em seu artigo 3º, o que é caracterizado como tráfico de seres humanos com o chamado A.M.O:
Considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a “Escravidão Moderna” o tráfico de pessoas é hoje o terceiro crime mais rentável para o crime organizado, atrás somente do tráfico de drogas e de armas, estima-se que o crime organizado fature cerca de US$ 32 bilhões por ano, cifra que pode ser ainda maior.
O crime organizado tem uma extensa rede de atuação transnacional com formas distintas de capturar e monitorar suas possíveis vítimas. Não existe uma única forma de atuação ou modus operandi, pois atuam em diversas áreas e suas engrenagens são facilmente readequadas, por isso a subnotificação é um fator que costuma atrapalhar as investigações do poder público e dos organismos internacionais.
Não existe um perfil de vítimas
Especialistas afirmam que não existe apenas um perfil de vítima para este crime, o que é sabido é que a maioria das vítimas do tráfico de pessoas têm em comum a situação de vulnerabilidade, ou extrema vulnerabilidade, e que muitas vezes são aliciadas por promessas de uma vida melhor em outros lugares, seja em âmbito nacional ou internacional.
O próprio Protocolo de Palermo prevê em seu texto que o consentimento é irrelevante em casos de vítimas de tráfico humano, por isso estabelece que mesmo havendo consentimento da vítima, em um primeiro momento, caso haja algum tipo de exploração no destino final, o consentimento (independente da modalidade) será considerado irrelevante se obtido pelos meios de coação (emocional ou física), ou enquadrando-se em um ou mais dos itens, como:
I. engano,
II. fraude,
III. abuso de autoridade;
IV. situação de (extrema) vulnerabilidade.
Isso quer dizer que, mesmo havendo prévio conhecimento da vítima sobre a situação que ela estaria sujeita, isso não desconfigura o crime de tráfico, pois a exploração do trabalho/situação delas continua sendo uma violação de direitos humanos, com previsão legal e jurisdição internacional, portanto o consentimento não é motivo que descaracteriza a situação de tráfico de pessoas e nem isenta a ação criminosa.
Outro dado relevante é que uma a cada três pessoas traficadas é menor de idade e 70% de todas as vítimas são mulheres e meninas. O Protocolo de Palermo, ao contrário dos instrumentos anteriores, reconhece que todas as pessoas podem ser traficadas, não apenas mulheres e crianças, e destaca também que o tráfico de pessoas pode ocorrer em todos os setores de trabalho sem se limitar ao mercado do sexo, como é comumente difundido.
Atuar na área de tráfico de pessoas nos faz encontrar respostas deste crime bárbaro em vários episódios da história, como conta-nos a internacionalista e ativista Camila Bellato do Projeto Líbertas Brasil (que também sou orgulhosamente uma das integrantes): “se considerarmos a Bíblia (cristã), símbolo considerável das religiões monoteístas como uma fonte histórica, veremos que o tráfico humano é uma atividade que faz parte da estrutura social e econômica muito antes de Cristo, como período histórico. Mas quando pensamos em tráfico de pessoas no mundo ocidental é associado aos tráfico de africanos, que tem início ao final do século XV quando é iniciada a expansão das Grandes Navegações, porém os portugueses foram pioneiros a comercializar seres humanos no comércio “internacional” de longas distâncias. Segundo The Trans-Atlantic Slave Trade Database, estima se que entre o século XVI à XIX foram traficado aproximadamente 12,5 milhões de africanos pelo mundo. O Brasil é o país que mais recebeu africanos nesse período, acredita-se que foram aproximadamente 8,5 milhões”
O Brasil tem cerca de 241 rotas de tráfico de pessoas mapeadas, a maior parte destas rotas estão no Norte e Nordeste do país, em regiões que apresentam altos índices de vulnerabilidade econômica e social, além das conhecidas rotas de turismo sexual, com destaque para os estados do Nordeste.
O aliciamento é a primeira etapa de “ação”, como é conhecida pelos especialistas, pois é a partir deste momento que inicia de fato o processo de tráfico. O aliciador é uma espécie de recrutador do crime organizado que age no recrutamento e convencimento, aproveitando-se da sua proximidade ou até mesmo da identificação com a vítima, tornando o caso muito difícil de ser diagnosticado. A percepção da vítima é distorcida por tratar-se de alguém “conhecido” e que lhe passa a falsa ideia de segurança e confiança. Somando-se a isso a sua esperança de que haverá ganhos na proposta e uma eminente mudança de vida
Campanha coração azul e a prevenção como melhor caminho
Em 2000, a ONU recebeu 13 mil denúncias, já em 2018 foram cerca de 25 mil denúncias de casos de tráfico de pessoas como reflexo das campanhas de prevenção e informação das pessoas sobre o crime. É importante destacar que o caráter multidisciplinar do tráfico de pessoas é fator que dificulta até mesmo sua compreensão e fácil percepção, por isso as campanhas que visam a alertar precisam caracterizá-lo com mais facilidade.
Além dos organismos internacionais, é preciso que o Brasil integre as polícias para que exista uma única base de informações entre elas, eliminando assim entraves burocráticos que dificultam as trocas e integração. Há necessidade de se pensar em ações e executá-las conjuntamente entre diversos setores, abordá-las sob várias perspectivas da política pública macro, desta forma envolvendo todo o poder público para uma única ação de prevenção deste crime que vitimiza milhões de pessoas em todo o mundo. É dever do Estado zelar e proteger seu nacional de todos os riscos que possam colocá-lo em situação de degradação e risco.
Aproveito este espaço para reforçar que julho é o mês da campanha Coração Azul, que foi pensada e criada pela Organização das Nações Unidas para falar da dor das milhares de vítimas do tráfico de pessoas e conscientizar dos riscos sobre o crime. No Brasil, o número para denúncia é o Disque 100.
Texto escrito por Katiane Bispo
Formada em Relações Internacionais e especialista em Políticas Públicas e Projetos Sociais. É podcaster no para “O Historiante”, colunista no jornal “Zero Àguia” e integrante do “Projeto Líbertas”. Instagram: @uma_internacionalista.
Fontes:
https://nacoesunidas.org/numero-de-casos-de-trafico-de-pessoas-atinge-recorde-em-13-anos-indica-relatorio/amp/ - [Relatório Tráfico de Pessoas - ONU]
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/relatorio-de-dados.pdf - [Relatório de Tráfico de pessoas Polícia Federal]
https://www.unodc.org/blueheart/pt/about-us.html - [UNODC] https://www.unodc.org/documents/congress/background-information/Human_Trafficking/TIP_Manual_es_module_01.pdf - [Manual de Combate ao Tráfico de Pessoas]
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