Quem nunca pegou ou até mesmo ofereceu uma carona com um amigo/amiga? Foi com essa premissa, que o famigerado “ir até ali” se tornou tão fácil e simples e assim que o mundo aderiu ao uso de aplicativos de transporte privado.
Uber, 99táxi, InDrive, entre outras plataformas que caíram rapidamente no gosto do público quando se tornaram uma alternativa mais viável e barata para os transportes coletivos e/ou comuns. E essas empresas parecem ter seguido a mesma receita: identificaram uma problemática na mobilidade urbana das cidades, investiram no desenvolvimento de um aplicativo para celular e, então, facilitaram a vida de milhares de consumidores, assim como abriu ao mercado de trabalho uma nova demanda – a de motoristas de aplicativo.
O que antes funcionava como uma troca entre amigos e parentes, hoje se tornou uma nova forma de convívio social onde todos podem colaborar uns com os outros. A chamada ‘Economia do Compartilhamento', também conhecida como ‘Economia Colaborativa’, surge como um modelo econômico onde bens e serviços são compartilhados, trocados ou alugados por meio dessas plataformas digitais.
“A internet está promovendo um mundo mais promissor, não apenas por nos fornecer mais informação e aparelhos cada vez melhores, mas por remodelar a sociedade inteira. Nós agora temos a tecnologia para resolver os problemas que assolaram a humanidade por séculos, tornando obsoletas as velhas instituições e velhas regras, que são cada vez mais suplantadas pela computação.” – Tom Slee, cientista da computação para o livro “Uberização: A nova onda do trabalho precarizado”.
Todavia, no cerne da transição do emprego tradicional para uma economia mais flexível, os trabalhadores da era digital agora atuam como freelancers ou autônomos, isto é, cada vez mais recorrendo à informalidade para manter seu sustento.
A natureza temporária e fragmentada dos trabalhos na Economia do Compartilhamento resulta na falta de segurança no emprego, devido à ausência de contratos fixos e benefícios, como plano de saúde e aposentadoria, deixando os trabalhadores mais vulneráveis e sem usufruir dos direitos trabalhistas conquistados pela humanidade.
Principalmente após a pandemia do Covid-19, em 2020, onde a humanidade vivenciou um mundo repleto de incertezas, o que impactou diretamente na alta de demissões como corte de custos por parte de empresas. Em 2020, o ano registrou a maior taxa média de desemprego do Brasil, com 13,5%, a maior da série histórica da PNAD Contínua, pesquisa iniciada em 2012. Dois anos depois, em 2022, a taxa caiu para 9,3%.
Até agosto de 2023, o país já contava com quase 39 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade, segundo o IBGE. A então chamada “uberização” – nome que se popularizou no Brasil para “precarização do trabalho” – levou diversos profissionais, dos mais diversos setores da economia, a enfrentarem condições de trabalho instáveis, baixa remuneração, falta de proteção trabalhista, tudo isso graças à crescente informalidade, isto é, o trabalho sem carteira assinada.
Mas afinal, o que é “uberização” do trabalho?
A "uberização" refere-se a uma tendência de organização e gestão no mundo do trabalho, que se deu com o avanço das tecnologias, principalmente com o advento da internet. Esse processo também conta com a quebra da relação patrão x empregado, que agora torna o trabalhador um prestador de serviço à demanda do mercado.
O nome se popularizou em solo brasileiro por conta da plataforma americana Uber, fundada em 2009, mas que chegou ao Brasil em 2016, e desde então conecta motoristas independentes – ou “parceiros”, como chama a marca – a passageiros por meio de seu aplicativo.
Apesar da explicação óbvia para um app tão popular, a Uber não representa somente um modelo de negócio que tem se expandido, mas sim para além do setor de transporte, um verdadeiro movimento que tem impactado vários outros setores da indústria. E como ela e as demais empresas do ramo fazem isso? Não basta criar apenas um aplicativo.
Com seu alto valor para o capitalismo atual, empresas-digitais como a Uber tem investido em propagandas nas redes sociais e na grande mídia para cooptar novos usuários, assim como também novos prestadores de serviços. O lema “seja seu próprio chefe” ou o conceito de “liberdade de escolher quando, onde e como trabalhar”, sem qualquer dúvida, é atraente, mas em contrapartida vem acompanhado dos desafios e precarização das condições de trabalho que colocam em risco não somente a vida e saúde do trabalhador ou trabalhadora, mas como inviabiliza seus acessos a benefícios como férias, 13º salário e plano de saúde, assim como gera instabilidade financeira. E isso não é uma mudança que começa no século da era digital.
Voltando aos primórdios
A compreensão do cenário atual do trabalho requer uma análise fundamentada na evolução e na atual operação do sistema capitalista. O trabalho, desde os primórdios da humanidade, é uma atividade vital, tanto para o indivíduo quanto para o convívio em coletivo, pois não só gera benefícios que se estendem para além do âmbito pessoal, como também faz com que a sociedade se desenvolva.
É inegável também que há mudanças no aspecto sócio político, econômico e cultural de uma sociedade quando se está sob a influência das decisões do âmbito mercadológico e ideológico dominante – como é o caso do grande empresariado que detém os meios de produção. À medida que aspirações naturais para garantir a sobrevivência pessoal e coletiva se transformam em resposta a essas mudanças, moldam-se novos paradigmas que respingam diretamente nas dinâmicas do trabalho contemporâneo.
Vale lembrar que o trabalho humano se destaca pela capacidade de dominar e transformar a natureza a seu favor, marcando a principal distinção entre o ser humano e os demais seres vivos. Esse aspecto ressalta a complexidade e a singularidade da relação entre trabalho, identidade e coletividade.
No entanto, à medida que a classe burguesa intensifica a massificação do trabalho para aumentar a produção e, em paralelo, polarizar as classes em prol do funcionamento do sistema, priorizando seu princípio de lucratividade acima de todo o processo, torna evidente que o trabalho perde sua essência humanizada, de ter um trabalhador que detém o conhecimento do processo, para apenas torná-lo parte do processo de produção.
Este se vê agora obrigado a vender sua força de trabalho para, predominantemente, atender as necessidades e especificidades da classe dominante, enquanto restringindo suas opções de ganho pelo que produziu, se prestando à dinâmica que muitas vezes ignora seu bem-estar e dignidade.
“Mas quando a vida humana se resume exclusivamente ao trabalho – como muitas vezes ocorre no mundo capitalista e em sua sociedade do trabalho abstrato –, ela se converte em um mundo penoso, alienante, aprisionado e unilateralizado.” - Ricardo Antunes, sociólogo, para o livro ‘Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0’.
Já com a crescente exponencial do consumo da internet, que não somente revolucionou a relação entre pessoas, mas também a forma como consumiam. Essa repercussão é, de certa forma, estratégica no atingir de uma economia, visto que as empresas, até então tidas como tradicionais, passam a ter reconhecimento se detém percepção de mercado dentro do espaço virtual.
Restaurantes, consultórios médicos, central de serviços doméstico e entre outros tipos de negócio que não adotassem a tecnologia como parte de seu investimento estariam fadados ao fracasso no mundo atual, mesmo que também predados pela lógica de facilitação do processo através dessas plataformas.
Isso significa que o capitalismo encontrou, na subjetividade humana, uma forma de cristalizar, ou seja, mascarar a exploração e expropriação do trabalho e, consequentemente, a interpretação de dominação sob o trabalhador. É lapidar o imaginário e forma de agir desses trabalhadores ao modo burguês, preferencialmente de forma não violenta, mas com convencimento de uma idealização que, em suma, não compete ao trabalhador, mas por vislumbre, o faz perpetuar a ideologia da classe dominante.
“A terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global. E com elas, a intermitência vem se tornando uns dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho, que foi resultado de lutas históricas e seculares da classe trabalhadora em tantas partes do mundo.” - Ricardo Antunes, sociólogo, para o livro ‘Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0’.
“Breque dos Apps”: o início de uma resposta
Em julho de 2020, no auge da pandemia do Covid-19, o Brasil foi palco de uma das mais importantes manifestações grevistas por trabalhadores autônomos. Ainda que com boa parte da população em casa, devido ao alto contágio do vírus, diversos trabalhadores que se viram na condição de desemprego e/ou trabalho autônomo tiveram de quebrar o lockdown para manter seu sustento.
O movimento "Breque dos Apps" ficou marcado como as paralisações realizadas por trabalhadores de aplicativos de entrega e transporte privado para reivindicar melhores condições de trabalho, salários justos, direitos e garantias sociais. Por dois dias seguidos naquele mês, houve manifestações que também uniram entregadores e entregadoras de diversos locais do Brasil em busca de melhores condições de trabalho, principalmente em boicote a empresas-aplicativos de entrega, como Loggi, iFood, Rappi e Uber Eats.
A demanda por ajustes nos valores pagos aos entregadores, o término de bloqueios injustificados, a garantia de apoio em casos de acidentes ou roubos e, sobretudo, a provisão de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) durante a crise pandêmica da Covid-19 foram algumas das diversas reivindicações.
A proposta central era unir forças, tanto por parte dos consumidores, que poderiam fortalecer a causa dos entregadores optando por não realizar pedidos através dos aplicativos, quanto por parte dos próprios entregadores, que poderiam recusar demandas, visando alcançar mudanças significativas nas condições de trabalho e na segurança durante a execução de suas atividades.
O modelo de manifestação inspirou o mundo, de forma que os trabalhadores dessas plataformas em outros pontos do globo também fizeram manifestações locais. Por mais “desenvolvido” que seja o país, mais evidente se tornam as práticas de trabalhadores com as mesmas condições precárias de trabalho, assim como as questionáveis práticas por parte das empresas que empregam.
No Brasil, está caminhando para a reta final um Projeto de Lei (PL 1471/22), que determina a regulamentação dos direitos trabalhistas para prestadores de serviços de aplicativo. As diretrizes dadas as empresas-aplicativos são de piso de salário-mínimo por hora de serviço, assim como: contribuições obrigatórias à Previdência para assegurar benefícios como aposentadoria, auxílio-doença e invalidez, férias remuneradas, além da aplicação do Microempreendedor Individual (MEI).
O que se pode concluir... até então!
Apesar da proposta inovadora para a modernidade, o fenômeno da "Uberização" tem colocado à prova várias problemáticas para o que tange o trabalho na sociedade atual. A autonomia e flexibilidade, muitas vezes enaltecidas no “discurso empreendedor”, transformam-se em soluções instáveis e suscetíveis ao desemprego contínuo. Isso isenta grandes empresários de responsabilidades trabalhistas, ocultando o bem-estar, autonomia, emancipação e desenvolvimento profissional dos trabalhadores que atuam nesse modelo.
É crucial considerarmos que os desafios diários enfrentados por esse proletariado digital, sendo a falta de comprometimento com os direitos trabalhistas, é uma questão central para o futuro do trabalho no Brasil e no mundo, podendo o sistema encontrar formas de usurpar outras modalidades de trabalho.
O retrato idealizado do empreendedorismo oferecido por essas plataformas é um exemplo disso, principalmente através dos meios de comunicação de massa e da internet, que não refletem a dura realidade em que os trabalhadores, atuando como prestadores de serviço, se encontram. E mesmo que, muitas vezes, essa tenha sido sua única alternativa para a sua sobrevivência.
Apesar de vivermos em um mundo literalmente automatizado e repleto de inovações surpreendentes, as condições de trabalho para esses profissionais e os que ainda virão ainda são consideradas insalubres e demandam um esforço excessivo. Isso é, particularmente, evidente para aqueles que se deslocam de bicicleta ou a pé para entregas, enfrentam jornadas exaustivas de trânsito pelas capitais sem receber uma remuneração adequada pelo seu trabalho empenhado.
Esses são alguns pontos dentro das infinidades de outras questões que surgem da discrepância entre a retórica do empreendedorismo e a realidade das condições de trabalho, que destaca a necessidade urgente de abordar e remediar as injustiças inerentes à "Uberização".
Texto escrito por Jeane Queiroz
É jornalista e pós-graduanda em Assessoria de Imprensa e Gestão da Comunicação. Orgulhosa "fã de carteirinha" de K-pop, fundou o coletivo Liga Comunarmy, que une fãs do grupo sul-coreano BTS focados em disseminar a perspectiva da luta de classes através do incentivo e análises das músicas da banda.
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Felipe Bonsanto
Referências
SLEE, Tom. Uberização: A nova onda do trabalho precarizado. 1ª Edição. Editora Elefante, 16 de setembro de 2019, pg 33.
ANTUNES, Ricardo. Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. 1ª Edição. Editora Boitempo, setembro de 2020, pgs. 11 e 28.
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