Em tempos de nacionalismos exacerbados em várias partes do mundo, a guerra civil ocorrida nos Balcãs, entre Sérvios e Bósnios, é um acontecimento que jamais pode ser esquecido.
E para nunca esquecer é preciso conhecer a história. Para isso, as HQs podem ser uma alternativa de imersão nesse conflito, permitindo que nos conectemos às suas consequências cotidianas sob milhares de vidas humanas.
Quando pensamos no continente europeu somos transportados, quase sempre, para a Europa ocidental. Como referências de nossa história: Portugal, Espanha, França e Holanda, que disputaram a terra brasilis, são bastantes conhecidas. Devido à herança cristã católica, e à copa do mundo de 1994, os brasileiros lembram bastante da Itália e do pênalti perdido por Roberto Baggio, nos consagrando tetracampeões. A Alemanha atravessou bastante nosso caminho futebolístico, com isso, para o bem ou para o mal, todos a conhecemos.
Agora, a Europa do Leste é bem menos badalada entre nós, a menos que você tenha idade para ter visto as incríveis seleções esportivas da antiga Iugoslávia, com destaque para o basquete. Talvez, se você acompanha a NBA já deva ter ouvido falar de Nikola Jokic (sérvio) e Luka Dončić (esloveno).
Bom, esses caras pertencem a uma região da Europa chamada Balcãs.
Esse território, próximo à Turquia a Leste e da Itália a oeste, é formado pelas repúblicas da: Croácia, Bósnia e Herzegovina, Sérvia, Montenegro, Macedônia e duas províncias autônomas: Kosovo e Voivodina. Todos esses Estados compunham a extinta Iugoslávia, constituída em 1918 a 1943 como um reino e, após 2ª guerra mundial, tornou-se uma união de 6 repúblicas, até 1992.
A História
Por vários séculos essa região foi dominada pelo império Otomano, praticamente quinhentos anos de presença, de 1402 ao fim da primeira guerra mundial. Todavia, o império Austro-húngaro também teve uma influência significativa, sobretudo na Croácia. Dessa história, os Balcãs se tornaram um lugar bastante fragmentado, tendo uma presença importante de mulçumanos na Bósnia, cristãos ortodoxos na Sérvia e cristãos católicos na Croácia. Essa divisão tornava a coesão dessa região muito complexa. Quem conseguiu manter essas repúblicas unidas, em suas diferenças, foi um líder da resistência comunista durante a segunda guerra mundial, Josip Broz, mais conhecido como Marechal Tito.
(imagem ou componente)
Ao longo da história, a Sérvia construiu uma identidade nacional bastante ufanista. Para se ter uma ideia, todo dia 28 de junho os sérvios comemoram a batalha do Kosovo, ocorrida em 1389. Os sérvios são derrotados pelos otomanos, mas comemoram sua identidade sérvia, já que ali entendem que perderam a batalha enquanto um povo. Mesmo sob domínio otomano, o nacionalismo sérvio permaneceu vivo, com uma orientação radical: onde há sérvios, ali é a Sérvia. Esta talvez seja a motivação principal da guerra civil que ocorreu de 1992 a 1999.
Joe Sacco e a guerra
É nesse conflito que mais uma vez o nosso artista-jornalista, Joe Sacco, já mencionado no artigo sobre a Palestina, vai à Bósnia durante a ocupação de grupos nacionalistas sérvios na região de Gorazde, mais especificamente no ano de 1995. A HQ produzida por ele coloca, logo de início, a falta de cobertura da mídia aos massacres corridos nessa região, dando destaque apenas para Sarajevo.
Em seu estilo já consagrado, ele percorre as ruas da cidade, conversa com moradores, participa de seu cotidiano. Na abertura, Sacco já participa de um momento festivo na casa do Edin, um personagem importante para a obra. Mesmo na guerra mais atroz, as pessoas não desejam apenas sobreviver à guerra, desejam viver, profundamente.
Em conversa com Edin, Sacco representa em sua obra os diferentes grupos que disputavam o poder nos Balcãs: os ustasha, os chetniks e os partisans. Assim, nos conta Edin:
“Quando os países do eixo ocuparam e desmembraram o reino da Iugoslávia, em 1941, eles instalaram croatas fascistas, os ustasha, no seu próprio estado, que foi expandido para abrigar a Bósnia. A fúria com que os ustasha promoveram seu programa de genocídio e carnificina, forçou a conversão religiosa e a expulsão da população sérvia restante, deixando até mesmo os nazistas horrorizados. As suas vítimas alimentaram as fileiras de dois grupos da resistência rivais, os chetniks e os partisans. Os chetniks eram um tipo de aliança ampla de grupos de sérvios nacionalistas e monarquistas, que procuravam estabelecer uma sérvia grande, limpa de não-sérvios. Eles agitavam uma guerra cruel contra os croatas da Bósnia e os cidadãos muçulmanos (que eram vistos como colaboradores dos ustasha) e os Partisans, que eles viam como rivais de pós-guerra. Os Partisans, a força de resistência comunista liderada por Tito, também era um grupo predominante sérvio (o próprio Tito era meio croata, meio esloveno), mas recebia muitos recrutas muçulmanos e croatas, que estavam descontentes com o crescimento do regime ustasha e a crueldade dos chetniks. Os partisans lutavam uma guerra contra as forças do eixo, geralmente, de forma defensiva e lideravam uma campanha agressiva contra os chetniks, a quem eles eventualmente atacavam”. (Sacco, 2001, p.21).
Esse barril de pólvora foi controlado pelo Marechal Tito por praticamente quatro décadas. Contudo, após sua morte, em 1980, chega ao poder na Sérvia um sujeito pouco carismático, mas exultante do nacionalismo sérvio, Slobbodan Milosevic. Ele inflou os sérvios a construir a “grande sérvia” e impedir a independência das repúblicas da Iugoslávia, que, a essa altura, já não viam razão para permanecer unidas. Primeiramente, reacendeu a rivalidade histórica de sérvios contra croatas ligados à ustasha. Um conflito civil se iniciou na Croácia e, logo depois, a Bósnia precisaria definir seu futuro. Edin relata para Sacco que a convivência entre sérvios, croatas e bosniaks (bósnios muçulmanos) era muito pacífica:
“Eu não fazia distinção entre crianças sérvias, croatas e muçulmanas. Nós estávamos sempre juntos... pescando nas florestas, no parque, no estádio...”. (Sacco, 2001, p.18).
Após o início de diversas ações do partido sérvio da Bósnia (SDS) para impedir a saída da Bósnia da Iugoslávia, Edin conta que a hostilidade dos sérvios foi aumentando exponencialmente em relação aos bosniaks.
“Eu perguntei a muitos sérvios... bons amigos... qual a razão... e a resposta era sempre a mesma: ‘Por que vocês não querem viver conosco num mesmo país, com Montenegro e a Sérvia?’ Meu amigo me disse: ‘Não espere boas relações entre nós no futuro próximo. Você tentara matar todos os sérvios na Bósnia e criar um país muçulmano’. Eu disse a ele que não era verdade e, se fosse, eu não iria querer viver num país muçulmano. Nos últimos dias antes da guerra, não se ouvia mais... ‘Olá, vizinho, como está’”. (Sacco, 2001, p.40).
As páginas seguintes da HQ Gorazde de Joe Sacco relatam o cotidiano e as consequências desse conflito que teve seu apogeu de horror no cerco a Saravejo e Srebrenika, quando tropas sérvias sitiaram essas duas cidades e cometeram massacres inimagináveis na Europa após o holocausto nazista, por cerca de três anos – de 1992 a 1995 – deixando milhares de vítimas.
Esse episódio ficou registrado em um trabalho ímpar de criação artística e documentação histórica. Fax de Sarajevo é uma HQ criada por Joe Kubert, autor de Thor e Gavião Negro pela DC, a partir de faxes enviados a ele por Ervin Rustemagic, dono de uma editora de quadrinhos chamada Strip Art Features, que tinha sede em Saravejo. Essa obra é preciosa, pois retrata o drama de Rustemagic tentando fugir desesperadamente com sua família da cidade, tendo, a cada passo dado, sua vida posta em risco pelos francoatiradores espalhados por todos os lugares. A edição brasileira conta com fotografias reais durante o cerco, bem como com fac-símiles, traduzidos para o português, dos faxes enviados por Ervin relatando seu cotidiano e pedindo ajuda estrangeira. Além disso, as ilustrações dão conta de nos transportar para o cenário da guerra de forma sensível, e, ao mesmo tempo, profundamente realista. A HQ nos permite ter contato com momentos como este:
“Caros Muriel e Joe,
Já faz 12 dias que sofremos sob bombardeios e desastres que uma guerra tão suja como esta provoca.
Vocês não conseguem imaginar o que significa para nós poder saber de vocês todos os dias. Não tenho palavras para explicar o quanto amamos vocês, Hermann, Martin, Jacques e todos os que se importam conosco e com o que acontece aqui. Quem me dera poder escrever faxes diferentes para cada um todos os dias, mas, dadas as circunstâncias, isso seria muito difícil.
Junto incluo o fax que enviei pela manhã ao Martin e ao Jacques, na Holanda.
Com amizade,
Maia; Ervin; Edina”.
O cenário atual na Europa, com destaque para a guerra entre Rússia e Ucrânia, nos interpela a estarmos atentos aos efeitos que o nacionalismo pode provocar. Basta lembrar que o presidente russo Vladimir Putin é aliado do presidente, recém reeleito da Sérvia, Aleksadar Vucic. Em seus discursos, volta a ressoar o desejo de uma “grande sérvia”, de modo que os sérvios assumam um lugar estratégico na geopolítica global. Os Balcãs são um termômetro importante para medir os limites que estão sendo impostos às democracias mundo afora. São em momentos de crise que nossa memória tem de estar mais presente, de forma que o futuro não repita o passado.
Texto escrito por Marco Aurélio Cardoso Moura
Professor de Língua Portuguesa no Ensino Médio; formado em Letras pela USP e especialista em Juventude no Mundo contemporâneo pela FAJE-BH. Hoje é mestrando em Educação pela FE-USP e colunista do “Zero Águia”.
Fontes:
Sacco, Joe. Área de segurança Garazde: a guerra na Bósnia oriental 1992-1995. São Paulo: Ed. Conrad, 2001.
Kubert, Joe. Faz de Sarajevo. São Paulo: Via Leitura, 2016.
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