“Não se nasce mulher, torna-se”
Essa célebre frase de Simone de Beauvoir tem tantos significados que caberia em si mesma inúmeras reflexões, mas hoje tenho apenas uma para trazer; a cultura patriarcal que ensina mulheres a se portarem a partir das ações e sentimentos masculinos. E esse molde social começa cedo, antes mesmo que possamos ter a consciência do que é pertencer ao gênero feminino e o que isso significa. A sociedade ainda tem uma visão política formada e constituída por homens, como explica Maria Luiza Álvares (1999):
"O mundo da casa como um espaço da mulher tornou-se um dos fundamentos centrais da formação de estereótipos ligados à definição dos papéis sexuais dos modelos tradicionais de comportamento"
Quando criança, as meninas aprendem a estarem limpas, bonitas e com vestes que remetam ao autocuidado. Logo cedo, a família compra para elas bonecas, e miniaturas de utensílios domésticos. A contemporaneidade cumpriu bem o seu papel ao modernizar bonecas que chorem e tem até mesmo aquelas que simulam a fezes onde as meninas podem praticar a troca de fraldas e exercitar seu lado “maternal”.
As brincadeiras que moldamos as meninas são as da vida doméstica, as que possam ensiná-las a serem boas mães, a que cuida, a que cozinha, a que limpa, a que se sinta confortável protegida no seu lar, o título dona de casa é o reflexo desta determinação de onde muitas mulheres possam se sentir pertencentes.
Não bastasse essa precoce recreação arraigada de machismo e sexismo, as meninas ouvem desde cedo que é bonito que se comportem como “mocinhas”, termo usado para que elas acreditem que essa validação é positiva, mas que esconde uma tentativa de adultização. E isso pode refletir no seu desenvolvimento, como conta a educadora e assistente social Veroni Medeiros:
“(...) o fato de querer ser adulto antes da hora, compromete a identidade de ser criança e, consequentemente, pode levar a uma vida adulta mais tímida. Nesta relação precoce com o adulto, o ser criança se “adultiza”, confundindo os limites que diferenciam uma fase da outra.”
Lembrei-me do relato do médico e escritor Dráuzio Villela relatando com indignação o dia que sua neta de 6 anos foi repreendida por uma mulher em um parque aquático por estar de biquíni, ao qual ela classificou “indecente”, e justificou sua repreensão ao fato dela, uma criança com seu corpo infantil poder mexer com a libido dos homens ao redor.
A indumentária feminina é uma forma de controle, seja para esconder, seja para descobrir, o limite disso fica a critério de cada uma, desde que seja uma escolha, mas quando meninas, compram-nos saias para usarmos, mas em seguida são proferidas ordens do tipo “fecha as pernas”. Nos obrigam a estarmos penteadas e com cabelos específicos, o cabelo armado por exemplo é sinônimo de desleixo, o corpo precisa se enquadrar em padrões estéticos que pouco ou nada respeitam o seu biótipo.
A menina que ousa romper esse estereótipo é chamada de “machona” ou mesmo “maria-moleque”. A figura da “maria-moleque” é a da menina que não quis se encaixar nos moldes, e a ela cabe penalidades como ser vista com maus-olhos pela família das outras crianças, quando não a sua própria família, como conta-nos o saber popular “leva mais pedrada o prego que aparece mais” ainda mais quando esse prego deveria nem mesmo ser visto.
De outro lado, os meninos são educados para expandir, dominar e explorar. Enquanto a menina já é socialmente logo cedo moldada ao cuidado, a eles pouco ou nada lhe é cobrado neste sentido. Ao descobrir que seu pênis lhe dá automaticamente uma ‘vantagem social’ ele usa de um modo que isso o favoreça. Logo cedo são incentivados a olharem as meninas de modo intimidador e descuidado, mesmo que isso cause a elas desconfortos ou mesmo medo. Em parte, somos ensinados a ser quem somos e paga um preço alto quem decide ser diferente do que é esperado.
Os meninos homossexuais são hostilizados e muitas vezes agredidos pelos outros meninos. O modo como se comportam muitas vezes é reforçado por um adulto e visto com chacota, quem mesmo sendo do mesmo gênero, não pertence ao seu “clã dominador”, situação que piora ainda mais quando àqueles preferem brincar com as meninas, que os acolhe melhor. Não ensinamos os meninos a cuidarem, vemos o reflexo disso nos homens que temos hoje.
Moldes sociais e Costumes
Se por um lado a sociedade molda, antes dela temos os Costumes, que entende-se como as regras sociais, uma espécie de código de conduta comum em que todos respeitam. A sociedade brasileira foi moldada pela vertente religiosa cristã, herdada dos colonizadores em boa parte do mundo.
Embora sejamos um dos países mais sincretistas do mundo, lideramos o ranking como país que mais acredita em Deus, 9 em cada 10 brasileiros dizem acreditar em Deus, segundo a pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos.
Isso é um reflexo importante do porquê a religião está muito longe de ser inofensiva quando falamos de opressão feminina. Não à toa que até meados da década de 1950 eram os pais quem decidiam com quem as filhas casariam, e até hoje há dentro das igrejas, protestantes ou católicas, a necessidade do celibato feminino como demonstração de pureza da mulher. O homem pode antes do casamente ter relações, é perdoável, mas elas deixam de ser elegíveis ao não serem mais virgens, o erro feminino é sempre duramente penalizado, podendo em alguns casos significar até mesmo a expulsão de um grupo ou templo.
Falei sobre a dominação e os moldes sociais, eles dizem muito sobre como nos comportamos. A narrativa cristã traz Eva como a culpada de termos sido expulsos do paraíso, os símbolos da maçã e da cobra remetem a essa penalidade, a maçã como algo proibido e a cobra a sensualidade e sexualidade, não por acaso o que é visto como algo negativo a qualquer mulher que seja virtuosa aos olhos dos cristãos.
Gerou consternação pública o caso da jovem mineira que foi deixada na rua por um motorista de aplicativo após o irmão estar dormindo e não ter aberto a porta para que ela entrasse em casa. Posteriormente outro homem que passava na rua a arrastou e estuprou a jovem que estava desacordada. O caso ganhou notoriedade porque a jovem foi negligenciada e posteriormente violentada porque nenhum homem se sentiu no dever de cuidar dela, muito pelo contrário, a reprimenda maior foi o fato dela estar na rua e alcoolizada.
A culpabilização da vítima é frequente quando vemos casos de violência contra a mulher, muitas ao continuarem na relação são julgadas e até mesmo culpadas por permanecerem na situação. Se ignora que aquelas mulheres estão fragilizadas e muitas vezes com pouca ou nenhuma rede de apoio. Além da violência que cabe ao gênero feminino, o pacto silencioso dos homens é algo facilmente percebido. Ao ver qualquer sinal de comportamento dominador, violento ou castrador de outro homem a frase seguinte é sempre na linha “o que ela fez”. Essa resposta é de clã, falei disso mais acima. Mas esconde também ao fato de precisarmos ser punidas se sairmos da “linha”. Já dizia Simone Beauvoir (1967):
“a feminilidade é uma espécie de infância contínua que afasta a mulher do tipo ideal da raça. (…)".
Normas sociais que reforçam o cuidado
O casamento ainda é visto como símbolo de status para muitas mulheres, uma mulher solteira após uma determinada idade é mal vista por muitos, a imposição do meio é tão brutal que o casamento para as mulheres é algo muito mais desvantajoso, porque elas passam a herdar duas rotinas quando trabalham fora: a produtiva e a não-remunerada.
Pesquisa do IBGE mostra que em média as mulheres dedicam mais de 21,4 horas por semana nos cuidados domésticos, 10 horas a mais do que dedicam os homens. A socióloga Helena Hirata diz:
“o trabalho doméstico não remunerado é aquele trabalho feito gratuitamente e considerado por muitos uma forma das mulheres expressarem amor aos filhos e aos companheiros, uma maneira de exprimir o amor que elas sentem pelos familiares”
É comum ver a imagem de mulheres que se casam e mais tarde os companheiros a transformam na figura da mulher cuidadora anterior, sendo a mãe, tia ou mesmo a avó. É como se cobrasse delas a dedicação e obrigatoriedade do cuidado do papel da mulher anterior que ocupou na sua vida. E essa carga laboral não é apenas a do cuidado doméstico, a elas recai também a carga afetiva que é compartilhada com uma filha, quando essa figura existe no lar.
Estamos formando uma sociedade de homens que se portam como meninos e que se recusam a amadurecer. Talvez Freud tenha uma resposta para isso, mas prefiro a explicação de que enquanto não mudarmos a forma como as mulheres encaram esse zelo exacerbado com homens tratando-os como “inofensivos” que precisam de cuidados constantes, estaremos nós mesmas sendo nossas algozes.
Ignora-se que mais de 11 milhões de mulheres são mães solo no país, onde a sociedade menciona os homens que não cuidam dos seus filhos? Onde existem grupos que se unem e pensam na falta da figura paterna na criação destas crianças? O “pacto de silêncio” dos homens deveria por si só ser um prenúncio para as mulheres de que precisamos nos unir e pensar como um grupo que tem voz e expressividade, não apenas para conquistar direitos, mas para que possamos nos manter vivas.
Nos venderam que somos o ‘segundo sexo’, o gênero apoiador, manso e cuidador. Não podemos delegar uma luta coletiva apenas para as outras mulheres quando podemos fazer nossa parte dessa mudança que precisamos e queremos.
Façamos cotidianamente um pouco cada vez mais, seja tratando homens adultos como homens adultos, não permitindo que ganhemos salários menores realizando as mesmas tarefas, seja não temendo ou se diminuindo para caber nos planos masculinos para nossa vida, seja não menosprezando outras mulheres quando ousarem trilhar caminhos diferentes dos que nos delegaram, seja não permitindo que nos digam como viver, seja não permitindo nosso apagamento ou ser ofuscada atrás de um homem por medo de viver sua vida da sua maneira. Se os homens não são ensinados a cuidar, cuidemos nós umas das outras nesse processo de mudança.
Que esse seja nosso trato! Se a leitura deste artigo for feita por um homem, passe para uma mulher e ajude que essa mensagem se espalhe.
Texto escrito por Katiane Bispo
É formada em Relações Internacionais, especialista em Políticas Públicas e Projetos Sociais. É podcaster no “O Historiante”, colunista no jornal “Zero Águia” e ativista em causas ligadas aos Direitos Humanos. Instagram: @uma_internacionalista
Revisão por Eliane Gomes
Edição por Felipe Bonsanto
BIBLIOGRAFIA
ÁLVARES, Maria Luiza Miranda (1999). Mulher e Participação Política. In: FERREIRA, Mary (Org). Mulher, Gênero e Políticas Públicas. São Luís: Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Mulher e Relações de Gênero da UFMA / Grupo de Mulheres da Ilha, v.1, p. 47-52, 1999.
HIRATA, Helena (2010). Cuidado, trabalho e autonomia das Mulheres. v.1, p. 47
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