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Gaza: a guerra viva por uma terra morta

Atualizado: 3 de set.

Um cenário desesperador de destruição em massa se estende há vastos 75 anos e parece estar longe do fim. A Palestina tem sido, há décadas, símbolo de resistência diante da ocupação e da violência. Mas, entre os escombros de Gaza, esconde-se uma dimensão frequentemente ignorada do conflito: a destruição deliberada dos recursos naturais, a privatização da água, a degradação do solo e a manipulação climática como instrumentos de dominação. Este artigo convida à reflexão por um novo ângulo: a ecocolonialidade na Palestina, onde não apenas o povo, mas também a terra, o clima e a água são alvos da ocupação.

Imagem mostrando o contraste entre antes e depois da invasão da Faixa de Gaza por Israel.
Foto: Getty, IDF

A Faixa de Gaza é um dos territórios mais densamente povoados do mundo e, ironicamente, um dos menos abastecidos com água potável. Segundo a ONG israelense B’Tselem, mais de 90% da água subterrânea está contaminada por salinidade e esgoto. Desde 2007, com o bloqueio israelense, a entrada de materiais para o tratamento da água foi severamente restringida. A destruição de infraestrutura hídrica não é colateral, mas sistemática.


Além disso, a política de “zonas militares” em terras agricultáveis impede que famílias palestinas acessem suas plantações. Terras férteis são tomadas sob o pretexto de segurança, mas transformam-se em colônias, condomínios e bases militares. O cenário atual demonstra que a colonização não se volta apenas contra corpos, mas contra solos, rios e sementes, observação já prevista por Ailton Krenak, líder indígena e ativista dos direitos dos povos originários do Brasil, ao afirmar em muitos de seus discursos que “a principal infraestrutura de uma nação é o seu território” e que, ao destruir florestas, rios e montanhas, destrói-se a base vital de um povo. Tal reflexão, pensada nos cenários indígenas do Brasil, aplica-se igualmente à Palestina.


Água: um campo de batalha invisível


Crianças carregando galões em meio a escombros.
Foto: Getty, IDF / Divulgação: FBBC

Na Cisjordânia, Israel controla mais de 80% da água potável, embora a maior parte da fonte esteja em território palestino. Assentamentos ilegais recebem água encanada, enquanto aldeias palestinas são obrigadas a comprar caminhões-pipa a preços inflacionados, muitas vezes, do próprio governo israelense. O acesso à água se tornou um privilégio colonial.


Em Gaza, bombardeios israelenses destruíram repetidamente usinas de dessalinização e estações de tratamento de esgoto. A contaminação dos aquíferos não afeta apenas os palestinos, mas compromete todo o ecossistema regional.


A Palestina e o ecocolonialismo: uma leitura necessária


O conceito de ecocolonialismo denuncia como os projetos coloniais modernos perpetuam-se por meio da dominação dos ecossistemas. O controle do território, da energia solar, do acesso à terra e da água integra um projeto maior de enfraquecimento da soberania palestina. Não se trata apenas de ocupação física, mas de destruição ecológica como método silencioso de dominação.


O clima, já naturalmente hostil, agrava-se com a devastação ambiental provocada pelas guerras, comprometendo diretamente a agricultura e a sobrevivência palestina.


Nesse contexto, ativistas como Greta Thunberg e o brasileiro Thiago Ávila tornaram-se vozes dissidentes ao conectar a luta climática à libertação dos povos oprimidos. Ambos foram criticados por se posicionarem em apoio à Palestina, expondo-se a riscos ao tentar prestar solidariedade às vítimas da ocupação.


Por que incomoda quando o ativismo ambiental toma posição política? Talvez porque escancara a hipocrisia do “ambientalismo branco”, aquele que protege florestas distantes, mas silencia diante de povos que morrem de sede ou vivem sem luz.


Greenwashing de Estado: potências sustentáveis e o silêncio diplomático


Israel promove-se como um polo de inovação ambiental, destacando tecnologias de irrigação e dessalinização. No entanto, impede que essas mesmas soluções sejam acessíveis à Palestina.  Esse paradoxo alimenta o chamado greenwashing estatal: uma ecologia performática que mascara crimes ambientais e violações humanitárias.


Enquanto isso, na arena internacional, países ditos “verdes” continuam a vender armamentos a Israel ou se abstêm em votações sobre cessar-fogo. O meio ambiente, nesse cenário, torna-se moeda diplomática, diluído entre interesses geopolíticos e discursos vazios.


O apagamento definitivo de uma terra sem povo, para um povo sem terra


Em Gaza, a destruição ultrapassa o físico: ela é também simbólica, cultural e histórica. O projeto colonial busca apagar um povo por completo, pela bala, pela escassez e pela memória.


A água contaminada não apenas adoece, mas impossibilita rituais ancestrais de purificação. Oliveiras centenárias, símbolo da resistência e da cultura palestina, são arrancadas e incineradas. Cada ruína de uma casa destruída carrega vidas interrompidas, idiomas calados, músicas sufocadas e modos de existir que não cabem mais na paisagem imposta.


Em Gaza, o apartheid ambiental se entrelaça com o risco real de etnocídio: a extinção progressiva de uma cultura inteira.


A morte ali é plural. É a infância impedida de brincar, o agricultor que não pode plantar, a canção sem voz no palco. É o tempo que se desfaz, porque todo povo precisa de chão, de presente e de futuro para continuar existindo.


Ao contrário do discurso dominante, esse não é um embate entre iguais. É um processo assimétrico, sistemático e respaldado internacionalmente, em que um povo é empurrado para a invisibilidade


Gaza não representa apenas uma crise humanitária. É um laboratório de colapso climático, de engenharia social e de apagamento cultural. Um espelho brutal do mundo que estamos construindo e, sem memória, não haverá futuro.


Torna-se ainda mais doloroso perceber que essa disputa sangrenta gira em torno de um pedaço de terra historicamente tratado como “de ninguém”. E, no meio da briga, matou-se a própria terra, ela que deveria ser o trunfo do vencedor, acabou por se tornar também a vítima. A guerra segue viva por uma terra morta.



Texto escrito por Mayara Ribeiro

Mayara Ribeiro é jornalista e escritora. Autora do livro "Bennin: Onde habita a resiliência feminina". Defensora dos Direitos Humanos com visão analítica técnico jurídica, sem tendencias de cunho político-partidárias. Atualmente atua na área de treinamento corporativo e endomarketing, além de ser colunista no Portal Águia. Pertencente ao Clube de Desbravadores, ponto chave de sua trajetória, que fortalece diariamente sua paixão por liderança, serviço comunitário e desenvolvimento humano.



Revisão: Eliane Gomes

Edição: João Guilherme V.G.

REFERÊNCIAS:


B’TSELEM – The Israeli Information Center for Human Rights in the Occupied Territories. Water crisis in Gaza. Disponível em: https://www.btselem.org/gaza_strip/20140209_gaza_water_crisis.


KRENAK, Ailton. Discurso de posse na ABL. Academia Brasileira de Letras, 2024. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/ailton-krenak/discurso-de-posse.


UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Environmental impact of the conflict in Gaza: preliminary assessment. 2024. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/environmental-impact-conflict-gaza-preliminary-assessment-environmental-impacts.


FERREIRA, Josivaldo et al. A guerra Israel–Palestina: questões históricas, religiosas e geopolíticas. Revista Rease, v. 4, n. 1, p. 1–14, 2024. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/18939/11115.


CNN BRASIL. Com 39% dos hospitais fechados, médicos escolhem qual paciente vai sobreviver em Gaza. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/com-39-dos-hospitais-fechados-medicos-escolhem-qual-paciente-vai-sobreviver-em-gaza/.


CNN BRASIL. Como começou o conflito entre Israel e palestinos. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/como-comecou-o-conflito-entre-israel-e-palestinos/.


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