Brasil: País do Futebol e do apagamento trans nos esportes
- Kauan Oscar

- há 15 horas
- 6 min de leitura
Conhecido como País do Futebol, o Brasil é marcado pela predominância desse esporte. No entanto, apenas uma categoria recebe maior atenção: o futebol masculino. Entretanto, aos poucos, outros esportes vêm conquistando visibilidade, como o vôlei, o basquete e o skate.
Assim como o futebol, todos os esportes apresentam duas categorias - masculina e feminina. Em alguns casos, a modalidade feminina chega a ser mais popular que a masculina, como acontece no vôlei.
Entretanto, muitos esquecem que além de homens e mulheres existem outras pessoas que também podem praticar esportes. A população transexual, em geral, é uma parcela frequentemente invisibilizada quando o assunto é esporte. Segundo diversas pesquisas, pessoas trans representam cerca de 2% da população brasileira, o que equivale a aproximadamente 1 a 3 milhões de adultos.
O brasileiro, em geral, não é um grande praticante de esportes: apenas 42% da população segue o nível de atividade física recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a Nix Diversidade, no estudo Diversidade & Inclusão no Esporte, 40,8% dos entrevistados transexuais afirmaram praticar esportes de forma amadora, enquanto 4,4% disseram atuar profissionalmente. Esses números mostram que uma parcela significativa dessa comunidade é adepta da prática esportiva.
Mas onde essas pessoas encontram espaço e visibilidade? Para responder a essa questão, buscamos conhecer um time de vôlei formado por atletas transexuais na capital paulista: o Angels Volley.
Um coletivo que tornou-se referência internacional
Criado em 2008, o Coletivo Esportivo Angels Volley surgiu como um espaço seguro para que pessoas LGBTQIA+ pudessem praticar vôlei sem medo de preconceito ou violência. O que começou como uma atividade de lazer entre amigos cresceu rapidamente, ganhou visibilidade e passou a atrair ex-atletas federados, transformando o grupo em uma referência internacional no esporte inclusivo.
Há mais de cinco anos, o Angels ampliou sua atuação ao formar um time feminino diverso, composto por mulheres trans, lésbicas, bissexuais e mulheres cis aliadas.
Hoje, o coletivo se define como um movimento socioeducativo que utiliza o esporte como ferramenta de transformação de vidas. Além de treinamentos e competições, a iniciativa oferece suporte integral às suas atletas: auxílio educacional, bolsas de estudo, cursos, oportunidades de emprego, apoio médico e jurídico, além de cestas básicas em situações emergenciais.
Reconhecido como um dos maiores projetos esportivos LGBTQIA+ do mundo, o Angels também exerce um papel político ao defender a existência e a resistência da diversidade no esporte.
Enquanto o time masculino participa de torneios de diversidade e campeonatos amadores, o feminino avança, ainda que de forma gradual, em ligas oficiais, enfrentando o desafio persistente da inclusão de mulheres trans.
O coletivo aposta no diálogo, na convivência e na performance em quadra como ferramentas para quebrar preconceitos e reafirmar que todas as atletas são mulheres.
Para seus membros, o esporte é visto como um direito básico e uma verdadeira ferramenta de sobrevivência. Em um ambiente historicamente marcado pelo machismo e pelo bullying, especialmente contra jovens LGBTQIA+, a manutenção do Angels Volley ao longo de 17 anos simboliza resistência, inspiração e a abertura de caminhos para novas gerações.
A importância do esporte como ferramenta de sobrevivência
Willy Montmann, 40 anos, ex-gestor da Secretaria de Esportes de São Paulo, é o fundador do Angels Volley, considerado o maior projeto esportivo LGBTQIA+ do Brasil. Criado em 2008, o coletivo reúne atualmente 353 atletas distribuídos em nove equipes e tornou-se referência por incluir mulheres trans, travestis, homens gays e pessoas iniciantes em um ambiente seguro e acolhedor.
Além do esporte, Montmann atua como produtor, roteirista e diretor de projetos culturais ligados à diversidade, assinando eventos como a Live da Parada LGBT+ e ações de visibilidade trans. À frente da Nix Diversidade, participou do primeiro mapeamento nacional do esporte LGBTQIA+, em parceria com a Nike. Com oficinas, campeonatos e palestras em empresas e instituições, consolidou-se como uma das principais vozes do esporte inclusivo no país.
Entrevistas:
Entrevista com o presidente do Angels Volley
Segundo Montmann:
"O esporte é um direito básico constitucional. Deveria ser para todas as pessoas. Está na Constituição: Esporte e lazer devem ser acessíveis a todos(...) Se já é complicado em um ambiente cisgênero e heteronormativo, imagine para pessoas trans."
Willy destaca ainda a importância do projeto como espaço de acolhimento em uma área já bastante sucateada
"Se o poder público não garante esse direito, são necessárias iniciativas como o Angels para atingir essa população e oferecer dignidade, esporte, lazer e saúde mental. Foi muito difícil no início, mas hoje, com apoio, conseguimos nos tornar o maior projeto esportivo inclusivo do mundo. Atualmente, temos 70 mulheres trans e travestis praticando esporte conosco."
Sobre o cenário brasileiro, o fundador faz a seguinte análise:
"O Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo. A cada 24 horas, uma pessoa trans é assassinada. A expectativa de vida é de apenas 35 anos — números dignos de uma guerra civil. Existem países em conflito que não têm estatísticas tão graves.Então, o Brasil não é acolhedor para pessoas trans. Porém, ao mesmo tempo, é o país com mais pessoas trans no mundo. Existe uma resistência enorme dessas pessoas em sobreviver, viver com dignidade, ter visibilidade e voz. É graças a essa força que conseguimos construir um projeto como o nosso, o maior do mundo."
Segundo Willy, o processo de acolhimento de uma nova atleta é feito de forma coletiva e afetuosa.
"Existe uma irmandade muito forte dentro da sigla T, já que é a mais vulnerável da sigla LGBTQIAP+, então existe uma irmandade entre elas. Quando uma meninas chega aqui temos várias categorias: escolinha, avançado e máster. A atleta é encaixada conforme seu nível. Se ela não sabe jogar, vai para a escolinha; se já joga, vai para o nível adequado. É tudo bem organizado."
O projeto se mantém com emendas parlamentares (como as de Erica Hilton e da Bancada Feminista) e com patrocínios de marcas como Nike, Barilla, Vênus, Vichy, Itaú e IBM.
"Elas(as marcas) olham para a comunidade trans, mas principalmente para o Angels. Construímos uma história de 17 anos, sendo 6 anos atuando com pessoas trans. É um projeto sério, que transforma vidas, muda narrativas e oferece novas perspectivas além do cárcere, da prostituição, da fome e da vulnerabilidade."
O impacto do projeto é concreto: No início, cerca de 90% das atletas trans viviam da prostitução, não como escolha mas como condição de sobrevivência. O projeto estimula a volta aos estudos, acesso à saúde, rede de empregabilidade e auxílio jurídico para retificação de nome e genêro.
Segundo Willy:
Nosso maior troféu não são apenas os campeonatos, mas as vidas transformadas.
O resultado é impressionante. Mais de 90% das atletas trabalham em empresas com carteira assinada, têm uma profissão, estão se formando na universidade. E o projeto não para por ai, o próximo passo segundo Willy é ter uma sede própria ao invés de usar espaços públicos ou alugadas.
As Vozes das Atletas

A reportagem conversou com quatro atletas do projeto. A seguir, os trechos editados das entrevistas, organizados para leitura jornalística.
Amanda — Ponteira/Oposta: “O Angels mudou tudo na minha vida.”

A atleta sonha em disputar campeonatos profissionais:
“O que me motiva é correr atrás do objetivo. Já participei de torneios profissionais, e foi através do Angels que tudo isso aconteceu.”
Sobre representar a comunidade trans:
“É muito difícil. A gente enfrenta muito preconceito. Mas é gratificante representar as mulheres trans.”
Erika — Ponteira/Oposta: “Esporte é acolhimento. Não queremos tirar vaga de ninguém.”
Erika já disputou a Copa da Diversidade, LMN, Copa Fênix e Copa Angels.
Ela acredita que o cenário melhorou pouco para pessoas trans:
“A comunidade trans não tem tanto acesso ao esporte. Algumas entidades estão abrindo espaço, mas ainda é pouco.”
Para ela, o Angels é essencial:
“É um time que acolhe, que dá segurança dentro e fora da quadra. Aqui a gente pode ser quem é.”
Sobre preconceito:
“Hoje é mais indireto. Não falam diretamente porque sabem que é crime. Mas existe.”
E deixa um recado ao leitor:
“Esporte é rendimento. Ser trans não dá vantagem. Todas seguimos as regras do COI. O desempenho é individual.”
Cid — Levantadora: “Encontrar pessoas que falam a mesma língua é maravilhoso.”
Com 50 anos e desde os 13 no vôlei, Cid nunca desistiu do esporte.

Ela afirma sentir o efeito da visibilidade trazida por Tiffany Abreu, primeira mulher trans na Superliga:
“Depois que a Tiffany apareceu, tudo ficou melhor.”
Sobre acolhimento:
“Aqui ninguém te trata diferente. Todas se acolhem, se ensinam, se levantam.”
Embora tenha sofrido veto em um campeonato no passado, ela segue otimista:
“Mostramos que não somos problema. Somos pessoas que pensam, sentem, trabalham e treinam como qualquer atleta.”
Milena — Líbero: “O Angels me ensinou a evoluir mentalmente.”
Milena chegou ao Angels com 11 anos; hoje, aos 18, vive seu primeiro ciclo como atleta adulta.
“Meu maior desafio era o psicológico. Eu me cobrava demais.”
Para ela, o ambiente de convivência foi essencial:
“As meninas sempre me respeitaram. Aqui todo mundo acolhe.”
A presença da tia, também atleta trans do coletivo, reforça seu vínculo com o time:
“Ela era uma pessoa explosiva, e melhorou muito depois que entrou no Angels.”
Texto escrito por Kauan Oscar
Estudante de Jornalismo, apaixonado por esportes e literatura, encontrou na profissão uma oportunidade perfeita para contar sobre suas paixões por meio de histórias que inspirem outras pessoas.
Revisão por Eliane Gomes
Edição por João Guilherme V.G







Comentários