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A romantização do corporativismo: Quando “vestir a camisa” vira uma armadilha

Atualizado: há 2 dias

Imagem gerada por IA na qual um homem sentado a mesa com uma taça, um computador e uma pilha de papéis recebe uma rosa e um envelope escrito "Demanda Urgente"
Fonte: Imagem gerada por IA

Nos últimos anos, o trabalho passou a ocupar um lugar quase emocional na vida das pessoas. O discurso sobre propósito, pertencimento e paixão pelo trabalho ganhou força e, à primeira vista, isso parece positivo. Afinal, quem não deseja se sentir engajado e orgulhoso da própria trajetória profissional?


O problema começa quando o engajamento saudável se transforma em romantização, uma narrativa que disfarça sobrecargas, normaliza o cansaço e transforma o “amor pelo trabalho” em justificativa para tudo. O cenário se agrava ainda mais quando esse discurso vira uma exigência constante. Nesse momento, algo se perde pelo caminho: o que deveria inspirar, acaba sufocando; o que deveria motivar, começa a adoecer.


No imaginário de muitas empresas, o profissional ideal ainda é aquele que está sempre “ligado”: responde mensagens fora do horário, participa de tudo e “veste a camisa” sem questionar. Já nas redes sociais, frases como “trabalhe com o que ama e nunca mais precisará trabalhar” reforçam a ideia de que a paixão justifica o excesso. Mas será mesmo?

A verdade é que o amor pelo trabalho não precisa - e nem deve - vir acompanhado de culpa por descansar. Quando o engajamento se transforma em devoção, o limite entre realização e exaustão desaparece. O corpo sente, fala, e a dor sobrepõe o amor com facilidade.


Um estudo clássico realizado em 2022 propõe um modelo em que a paixão pelo trabalho (“work passion”) se divide em dois tipos: paixão harmoniosa (“harmonious passion”) e paixão obsessiva (“obsessive passion”). O modelo sugere que a paixão obsessiva está associada a maiores conflitos entre trabalho e vida pessoal e, consequentemente, a um risco elevado de burnout - algo cada vez mais comum entre os chamados “workaholics”.


Mas, afinal, o que leva tantos profissionais a romantizarem o trabalho em excesso?

Em entrevista ao Portal Águia, a psicoterapeuta Dra. Darlene Vieira explica que esse comportamento muitas vezes está relacionado a necessidade de reconhecimento e pertencimento, alimentada por uma cultura que reforça a ideia de que “quem não é visto, não é lembrado”. Trata-se de uma defesa psíquica, mas também de uma armadilha, já que o sujeito acaba se convencendo de que o excesso é uma virtude.


Neste sentido, nota-se que muitas empresas aprenderam a usar essa lógica a seu favor. Um funcionário “apaixonado pelo que faz” tende a produzir mais e questionar menos, muitas vezes gerando um acúmulo de demandas. O colaborador eficiente e engajado acaba sobrecarregado, sem que haja necessariamente uma remuneração proporcional ao volume de trabalho.


As “recompensas” vêm em formato de descompressão: os famosos ambientes com puffs, slogans como “somos uma família” e eventos motivacionais que criam uma ilusão de cuidado. No entanto, quando esse discurso não é acompanhado de políticas reais de equilíbrio e reconhecimento, o colaborador passa a entender que o afeto é moeda de troca, e não uma política de valorização. 


No fundo, tudo se resume a um jogo simbólico, onde a promessa de conquista serve para sustentar a engrenagem.


A romantização do trabalho mina a autonomia, o senso de pertencimento genuíno e até a criatividade. Ela forma profissionais que têm medo de descansar, sentem culpa por priorizar a vida pessoal e enxergam o autocuidado como um luxo. O resultado é adoecimento, frustração e, consequentemente, alta rotatividade nas empresas - o famoso “turnover”.


Afinal, a ilusão de satisfação com o trabalho chega ao fim. Cedo ou tarde, o profissional busca libertação, ainda que isso signifique recomeçar o mesmo ciclo em outro lugar. Um ciclo vicioso, mas agora com o “luxo” de se permitir uma nova chance - em um cenário diferente, mas com as mesmas armadilhas disfarçadas de propósito.


Uma Análise do Tempo: Do Sucesso Exaustivo à Constante Busca por Qualidade de Vida


Imagem mostrando três cenas do "Home Office". Na primeira à esquerda, uma mulher acaricia um cachorro enquanto trabalha ao computador. Na do meio, uma mulher sentada na cama segurando uma caneca trabalha ao computador. Na da direta, uma mulher segura um bebe enquanto trabalha ao computador.
Fonte: Banco de imagens do Canva

Entre as décadas de 1970 a 1990, trabalhar muito era sinônimo de caráter. As gerações mais antigas, especialmente os “baby boomers” e a geração X, cresceram ouvindo que o sucesso dependia de resistência, sacrifício e lealdade à empresa. O ambiente corporativo era marcado por hierarquias rígidas e pelo medo da instabilidade.


Ter um emprego fixo, construir carreira em uma única empresa e ser reconhecido pelo esforço eram símbolos de sucesso. O profissional “forte” era aquele que não reclamava, não demonstrava fragilidade e se orgulhava de “dar conta de tudo”.


os millennials (Geração Y - nascidos entre 1981 e 1996) começaram a questionar essa lógica. Vivenciaram as crises econômicas dos anos 2000, o avanço da tecnologia, o surgimento do discurso do propósito, de que o trabalho precisa “fazer sentido” e o boom das startups, que prometiam ambientes mais leves e criativos.


No entanto, esse novo modelo trouxe um efeito colateral: o romantismo profissional. Ou seja, o trabalho deixou de ser apenas um meio de sustento e passou a ser um símbolo de identidade. Muitos jovens passaram a buscar realização pessoal e emocional no ambiente corporativo, alimentando a crença de que ser apaixonado pelo trabalho justifica o excesso.


A Geração Z (nascidos a partir de 1997), por sua vez, cresceu vendo pais e irmãos mais velhos adoecerem por excesso de dedicação, o que trouxe a necessidade de romper esse ciclo. Com isso, surgiram novas prioridades: saúde mental, flexibilidade e qualidade de vida.


Essa geração questiona abertamente a cultura do “trabalhar até cair” e valoriza empresas com propósito real, jornadas sustentáveis, modelos híbridos de trabalho, flexibilidade de horários e limites claros. Enquanto gerações anteriores viam o descanso como “fraqueza”, os novos profissionais o enxergam como uma condição básica para a performance sustentável.


Uma via de mão dupla: O papel da empresa na romantização do trabalho


Imagem mostrando um homem coberto de lembretes adesivos. Ele está em frente a um computador e com uma expressão de preocupado.
Fonte: Banco de imagens do Canva

A romantização do trabalho não se sustenta sozinha: ela costuma ser alimentada por culturas organizacionais que disfarçam a exploração com discursos inspiradores sobre pertencimento, espírito familiar, humanização e sucesso profissional. Promessas que, muitas vezes, funcionam como ferramentas de manipulação emocional, mascarando a sobrecarga, a ausência de limites e exploração afetiva.


Segundo Byung-Chul Han, filósofo e autor de Sociedade do Cansaço (2015), vivemos uma era em que o sujeito se tornou “empresário de si mesmo”, acreditando que fracassar no trabalho é fracassar como pessoa. Esse pensamento abre espaço para que empresas tóxicas transfiram toda a responsabilidade do adoecimento para o indivíduo, enquanto mantêm estruturas de produtividade insustentáveis.


Está cada vez mais comum ver profissionais adoecendo silenciosamente e buscando apoio psicológico para reconstruir uma vida mais digna e equilibrada. Muitos recorrem a afastamentos estratégicos, tentando evitar o colapso que se anuncia em crises de ansiedade, disfarçadas em idas demoradas ao banheiro ou em momentos de aparente distração.


A normalização desse cenário expõe a face perversa de gestões que priorizam o lucro acima das pessoas e evidencia o paradoxo de um sistema em que as vítimas buscam ajuda terapêutica, enquanto os responsáveis sequer reconhecem - ou se importam - com o dano que provocam.


Para evitar o agravamento desse ciclo, reconhecer um ambiente tóxico é apenas o primeiro passo.


Essa identificação passa por observar comportamentos e práticas que, embora normalizados, revelam uma cultura corporativa adoecedora.


Entre os principais sinais, destacam-se:


  1. Culto à disponibilidade: quando o colaborador mais valorizado é aquele que está sempre acessível, mesmo fora do expediente, e que não se opõe a permanecer em atividade após a jornada de trabalho.

  2. Glorificação do sacrifício: expressa nos elogios constantes a quem “resolve tudo”, mesmo às custas da própria saúde e bem-estar.

  3. Culpabilização das necessidades pessoais: ocorre quando o cuidado com a saúde física ou mental é interpretado como “falta de compromisso” ou “falta de vontade”.

  4. Ausência de coerência: empresas que discursam sobre propósito e meritocracia, mas promovem competição desleal, metas inalcançáveis e jornadas exaustivas.


Reconhecer esses sinais é fundamental para romper o ciclo da romantização do trabalho e resgatar a dignidade por trás da palavra produtividade.


Preservar-se emocionalmente é essencial para estabelecer e respeitar os próprios limites, tornando mais provável a libertação sem culpa. De acordo com a psicóloga Emma Seppälä (Universidade de Yale), estratégias como autocompaixão, distanciamento emocional e apoio social são fundamentais para evitar que o trabalho domine a identidade pessoal.


A principal forma de proteção é a consciência crítica. Compreender que há interesses corporativos por trás da romantização é essencial para não cair na armadilha do “amor ao trabalho” que tudo justifica. Empresas éticas não precisam convencer seus colaboradores de que são uma “família”, elas demonstram isso com práticas justas, respeito e limites saudáveis.


Como resume a filósofa Marcia Tiburi (2018), “quando o amor é usado como ferramenta de controle, ele deixa de ser afeto e se torna opressão”. Romantizar o trabalho é, portanto, uma forma sutil de naturalizar o desequilíbrio, e questionar isso é um ato de maturidade profissional.


No fim das contas, não se trata de amar menos o que se faz, mas de amar mais a si mesmo dentro do que se faz. Trabalhar com propósito é valioso, desde que o propósito não nos custe a saúde, o sono e a sanidade.


Texto escrito por Mayara Ribeiro

Mayara Ribeiro é jornalista e escritora. Autora do livro "Bennin: Onde habita a resiliência feminina". Defensora dos Direitos Humanos com visão analítica técnico jurídica, sem tendencias de cunho político-partidárias. Atualmente atua na área de treinamento corporativo e endomarketing, além de ser colunista no Portal Águia. Pertencente ao Clube de Desbravadores, ponto chave de sua trajetória, que fortalece diariamente sua paixão por liderança, serviço comunitário e desenvolvimento humano.



Revisão por Eliane Gomes

Edição por João Guilherme V.G.


Referências:


BYUNG-CHUL, Han. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


TIBURI, Marcia. Filosofia prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record, 2018.


SEPPÄLÄ, Emma. The Happiness Track: How to Apply the Science of Happiness to Accelerate Your Success. New York: HarperOne, 2016.


DELOITTE. Global Gen Z and Millennial Survey 2024. Disponível em: https://www.deloitte.com/global/en/issues/work/genz-millennial-survey.html.


VALLERAND, Robert J.; BLANCHARD, C.; MAGEAU, G. A.; KOESTNER, R.; RATELLE, C.; LEONARD, M.; GAGNE, M. “On Passion for Work and Its Relation to Harmonious and Obsessive Involvement.” Journal of Personality and Social Psychology, v. 85, n. 4, p. 756–767, 2003.


HARVARD BUSINESS REVIEW. Beyond Burned Out. 2021. Disponível em: https://hbr.org/2021/02/beyond-burned-out.


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