Qual será o destino do país andino ainda é uma incógnita. No entanto, a ação desastrosa de Pedro Castillo poderá resultar numa grande transformação, caso os movimentos sociais consigam, por pressão popular, a Constituinte?
O Peru vive momentos de grandes tensões pouco mais de um mês desde que o ex-presidente, Pedro Castillo, foi preso após anunciar um "governo de exceção" e tentar dissolver o Congresso peruano. Tudo poderia ser visto de modo simples, mas como todo recorte da América Latina como território político, é necessário um resgate histórico ou tudo se torna descontextualizado.
Se no Brasil nos envergonhamos de um complexo cenário político regado a corrupção (quando pensamos nos militares com gana de poder e empresariado sem amor à Pátria), este posto poderia facilmente ser dividido com nosso vizinho Peru, e ouso afirmar que não apenas com ele.
A conjuntura atual — fruto das inúmeras ditaduras vividas pela América Latina, financiada e treinada pelo governo norte-americano — deixou uma herança perversa regada ao neoliberalismo, truculência estatal e mentiras pela manutenção do status quo. Somando tudo isso com uma fachada de institucionalização, legalidade e impunidade.
Quem é Pedro Castillo?
Pedro Castillo tem 53 anos e nasceu em uma pequena cidade andina de Puña, na província de Chota, onde os moradores costumam usar chapéu de aba larga, algo que se tornou uma das suas marcas registradas quando ainda estava em campanha nas eleições de 2021.
Ganhou notoriedade após ser um dos principais líderes de uma greve de professores que durou quase três meses, exigindo aumento de salários e melhores condições de trabalho.
Na campanha eleitoral, prometeu um aumento para os professores do sistema público, mas adotou uma postura mais conservadora ao não apoiar alguns temas, como, por exemplo, o reconhecimento de direitos a minorias sexuais, se posicionou contra a legalização do aborto e não demonstrou muito interesse quanto à alta taxa de analfabetismo que atinge majoritariamente as mulheres peruanas. Além disso, apoiou uma segurança pública mais linha dura.
Parte dessa postura mais conservadora, em que tinha uma forte pressão de um congresso de idoneidade duvidosa, preconceituoso pelas suas origens rurais (campesina, em espanhol) e com inúmeras denúncias de pessoas que escolheram para integrar seu governo e tomar decisões equivocadas, motivaram a tentar de modo desesperado um “governo de exceção” no fim do governo de Castillo, que hoje está preso.
A grande dissidência na sua já pequena base governista foi gradual ao longo do seu mandado. Além da grande pressão do Congresso peruano para aprovação do seu impeachment, que em menos de dois anos de governo já teria o terceiro pedido em votação, Castillo anunciou em junho de 2022 sua saída do partido, pelo qual foi eleito, o Peru Libre (Peru Livre), e agravou ainda mais a sua já instável situação política.
Instabilidade política e o fantasma do Fujimorismo no Peru
Pedro Castillo venceu a eleição com 50,13% dos votos, uma margem muito apertada contra Keiko Fujimori, a mais nova figurante do Fujimorismo. O Fujimorismo foi uma nefasta corrente política fundada pelo pai de Keiko, o ex-ditador Alberto Fujimori, que governou o país durante toda a década de 1990.
Muitos analistas políticos afirmam que Castillo conseguiu chegar ao pleito graças a forte rejeição a Keiko por parte dos eleitores. Nas eleições, o número de votos chegou a mais de 60% de rejeição durante a corrida presidencial.
O Fujimorismo não deixou de herança apenas figuras como Keiko e seus seguidores no Congresso peruano, mas também milhares de vítimas de um governo totalitário que seguiram à risca a cartilha neoliberal para as classes dominantes peruanas, sobretudo aos investimentos estrangeiros em detrimento da camada mais pobre, enquanto usava uma imagem populista de “homem do povo”.
O ditador Alberto Fujimori trajava vestes típicas para ganhar a simpatia dos peruanos ao mesmo tempo em que usava políticas como o plano de esterilização forçada de 350 mil mulheres e 25 mil homens camponeses e indígenas, prática prevista pelo Programa Nacional de Planejamento durante seu governo.
A queda de braço entre os Poderes e a crise institucional que alimenta a revolta popular
No sistema presidencialista, o presidente acumula a função de Chefe de Estado (responsável por representar o país a nível internacional) e Chefe de governo (responsável por governar o país com os ministros e demais elementos do poder Executivo). Já no sistema semipresidencialista, que é o caso do Peru, o presidente tem suas funções, assim como no sistema parlamentarista, compartilhadas com a figura de um Primeiro-Ministro ou “Chefe dos Ministros”. Quem ocupava o posto era Betssy Chávez, que assumiu o cargo poucos dias antes de Castillo ser preso.
A Constituição peruana, promulgada em 1993, é uma das heranças do Fujimorismo. Na sua redação há elementos que abrem precedentes para as constantes quedas de braço dos Poderes do país. Apenas três presidentes peruanos conseguiram terminar seu pleito desde a queda de Fujimori.
O jogo de poder que existe no Peru envolve, sobretudo o Executivo e o Legislativo, mas as polêmicas também envolvem o Judiciário. No dia 7 de dezembro de 2022, Castillo dissolveu os poderes Legislativo e Judiciário, convocou eleições para uma assembleia constituinte e decretou "estado de exceção", o que incluía toque de recolher. A tentativa de Castillo foi desastrosa e nem as Forças Armadas, tampouco a Polícia, apoiaram o golpe e ele acabou sendo preso no mesmo dia.
Uma das promessas de Castillo, quando ainda estava em campanha, era a votação de uma Constituinte para mudança da Constituição peruana, mas ele não conseguiu apoio político tampouco popular para tal. A queda da popularidade Castillo, quando ainda era presidente, não conseguiu blindá-lo e dar o desfecho diferente do que teve. Estima-se que apenas 20% do povo peruano são seus apoiadores, o restante optou contra o Fujimorismo que tinha representação na figura de Keiko.
Reação internacional e manifestações pró-Castillo
Ao saber que a tentativa de golpe havia tido efeito reverso, Castillo foi detido pela escolta ao se dirigir à Embaixada Mexicana, após a declaração do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador a seu favor como tentativa de receber asilo.
Nos dias seguintes, como retaliação ao apoio dado a Pedro Castillo, o governo do Peru chamou para consulta embaixadores na Argentina, Bolívia, Colômbia e México. O Brasil, na época, manifestou-se dizendo “acompanhar de perto” a situação vivida no Peru.
Com o pedido de impeachment aprovado e a prisão de Castillo decretada, a vice-presidente, Dina Boluarte, foi declarada a nova presidente. No sábado, 28 de dezembro de 2022, o Congresso rejeitou o adiantamento das eleições para este ano. Boluarte pediu ao Legislativo que deixasse de lado seus interesses pessoais e partidários para "abrir o caminho para uma saída da crise" e priorizasse o que é melhor para o Peru.
A proposta apresentada era de que as eleições fossem antecipadas para dezembro de 2023, mas foi rejeitada pelo Congresso peruano, que parece se importar pouco com o clima de instabilidade em que vive o país. Com a rejeição, as novas eleições permanecerão marcadas apenas para abril de 2024.
Movimentos populares convocaram Greve Geral em apoio a Castillo e alguns grupos dizem que se trata de uma “Guerra civil”. Entre marchas e placas que pedem desde a liberdade de Castillo a uma nova Constituinte e antecipação de uma nova eleição, os manifestantes sofrem represálias da polícia peruana e já houve o registro de mais de 46 mortos (até o fechamento desde artigo).
O clima de tensão no Peru aumenta a cada dia e o governo já decretou estado de emergência. Em 21 de janeiro foi anunciado que o ingresso a cidadela Inca de Machu Picchu estará fechado por medida de segurança e por tempo indeterminado. O Itamaraty divulgou uma nota recomendando que os brasileiros adiem viagens ao país, exceto por motivos urgentes ou indispensáveis.
Ao ler relatos sobre a violência policial e as manifestações que têm matado peruanos em todo país, me recordo do dia em que estava sentada em uma Praça em Miraflores, em meados de 2018, e uma senhora peruana me disse com um tom (do qual aprendi a reconhecer na burguesia brasileira em seus anseios de superioridade) que a violência que estava se vendo no Peru era culpa dos venezuelanos que estavam chegando, porque os peruanos eram, são e sempre foram “doces e mansos”.
Não sei o nome daquela senhora, mas preciso dizer à ela que a violência não é culpa de um povo ou nação, é resultado de um sistema de exclusão das camadas mais pobres e que a mansidão na verdade não é uma opção quando o estômago está vazio e as chances de um futuro melhor simplesmente não aparecem no horizonte. Já dizia Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, “Os que comem bem, dormem bem e têm boas casas acham que se gasta demais em política social”.
Falei sobre os Poderes no Brasil neste artigo e a formação da República do Brasil neste. Confira! |
Texto escrito por Katiane Bispo
É formada em Relações Internacionais, especialista em Políticas Públicas e Projetos Sociais. É podcaster no “O Historiante”, colunista no jornal “Zero Águia” e ativista em causas ligadas aos Direitos Humanos. Instagram: @uma_internacionalista.
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