“E se Doha for o novo Vaticano?”
- Editorial Portal Águia
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O Catar tem sido palco de diversos eventos de destaque. Entre eles, a realização da Copa do Mundo FIFA de 2022 que consolidou sua posição como destino turístico e cultural, impulsionado por seus museus renomados e eventos internacionais.
Localizada às margens do Golfo Pérsico, Doha - capital do Catar - é uma cidade surpreendente que combina tradição e modernidade. Apesar de seu pequeno território, o país exerce influência significativa. O Catar acumulou um portfólio diplomático que poucos países de sua dimensão sequer ousariam ambicionar. Em uma década marcada por tensões geopolíticas e rearranjos regionais, esse emirado do Golfo tem se destacado como mediador em crises de alto risco: do Afeganistão à Faixa de Gaza, passando pelas negociações entre Irã e Estados Unidos.
Mas não é de hoje que Doha se posiciona como um centro de diálogo. Sua combinação singular de vastos recursos energéticos, neutralidade estratégica e uma diplomacia multicanal — capaz de dialogar tanto com Washington quanto com o Talibã — molda, de forma silenciosa, decisões que impactam milhões de vidas. Essa atuação discreta e eficaz, ancorada no soft power, levanta uma pergunta instigante: Estaria Doha se consolidando como uma nova potência silenciosa da diplomacia internacional?

O Catar como mediador internacional
Quando a diplomacia tradicional falha ou encontra barreiras políticas, Doha frequentemente surge como uma ponte entre inimigos históricos. Mas antes de avançar, é importante entender o que é diplomacia tradicional.
A diplomacia tradicional refere-se à interação entre conflito e construção da paz (Siracusa, 2013). Também chamada de diplomacia de Estado, é o modelo historicamente dominante nas relações internacionais, caracterizado pelo monopólio estatal da negociação, conduzida por governos via embaixadas e baseada em relações formais entre Estados soberanos. Um exemplo seria Estados Unidos e China negociando diretamente por meio de seus ministros das Relações Exteriores. Essa diplomacia opera em espaços oficiais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Por outro lado, a diplomacia moderna, iniciada com a Paz de Vestfália em 1648, que pôs fim às hostilidades na Guerra dos Trinta Anos, marca o estabelecimento de relações diplomáticas entre Estados, ministérios, embaixadas e tratados como a Convenção de Havana. Ela diferencia diplomacia oficial da pública e aborda o direito internacional, como a Convenção de Viena e a Carta das Nações Unidas.
Enquanto a diplomacia tradicional — marcada por protocolos formais e alinhamentos ideológicos entre Estados reconhecidos — enfrenta limites diante de conflitos fragmentados e atores não estatais, o Catar ocupa um espaço pouco convencional. Ao invés de seguir os cânones clássicos da diplomacia estatal, Doha aposta em uma mediação flexível e pragmática. Mas o que significa isso, exatamente?
A característica de flexível — “adj. Diz-se de algo: Que pode ser adaptado de acordo com as circunstâncias ou necessidades” —, no contexto das relações internacionais, refere-se à disposição de manter canais abertos com atores que não dialogam entre si, como EUA e Irã, ou Israel e Hamas. Essa neutralidade ativa permite ao Catar posicionar-se conforme o contexto. Ao focar em resultados concretos, como trocas de prisioneiros ou ajuda humanitária, sua abordagem pragmática se destaca.
Mesmo com um regime autoritário e conservador, Doha consegue dialogar com todas as partes envolvidas. Esse desvio da norma não é um improviso, mas uma estratégia deliberada de ganhos simbólicos e diplomáticos, baseada na confiança e na manutenção de canais abertos. Nos últimos anos, o Catar consolidou sua reputação como mediador confiável, com acesso simultâneo a Washington, Gaza e outros polos de tensão.
Exemplos de atuação diplomática de Doha
Em Gaza, o Catar foi uma das poucas potências a manter diálogo com o Hamas. Desde 2012, destinou bilhões de dólares à reconstrução da Faixa de Gaza, além de atuar diretamente em negociações de cessar-fogo e liberação de reféns durante a guerra entre Israel e o grupo palestino.

No Afeganistão, Doha recebeu, desde 2013, o Escritório Político do Talibã — tornando-se território neutro para negociações que culminaram no Acordo de Doha, assinado entre os Estados Unidos e o Talibã em 2020.

Em 2023, o Catar teve papel fundamental na troca de prisioneiros entre Irã e Estados Unidos, além de facilitar discussões indiretas sobre o programa nuclear iraniano.
Apesar de suas limitações territoriais e diferenças em relação às democracias ocidentais, o Catar se destaca por sua mediação baseada em pragmatismo, flexibilidade e soft power. É um ator pequeno em tamanho, mas grande em influência simbólica e diplomática - um verdadeiro centro de diálogo global, tal como o Vaticano.
Se o Vaticano exerce influência simbólica por meio da fé, o Catar aposta na confiança construída e na disposição de dialogar com todos. Seu poder reside em manter portas abertas onde outros as fecham.
Editorial Portal Águia
Revisão por Eliane Gomes
Edição por João Guilherme V.G.
Referências:
Calduch, R.- Dinámica de la Sociedad Internacional.- Edit. CEURA. Madrid, 1993
Marks, S., Freeman, C.W. (2025, July 23). diplomacy. Encyclopedia Britannica. https://www.britannica.com/topic/diplomacy
Khomeriki, D. (2022). Benefits and Risks of Digital Diplomacy: Is Traditional Diplomacy in Decline?. In World Politics and the Challenges for International Security (pp. 261-281). IGI Global Scientific Publishing.
Allain, J. C. (1996). Diplomacia tradicional y conferencias cumbre:¿ dos realidades en compentencia?. Historia contemporánea, 15.
Siracusa, Joseph M., 'Evolution of diplomacy', Diplomacy: A Very Short Introduction, 1st edn, Very Short Introductions (Oxford, 2010; online edn, Oxford Academic, 24 Sept. 2013), https://doi.org/10.1093/actrade/9780199588503.003.0001, accessed 24 July 2025.
https://www.rae.es/diccionario-estudiante/flexible#:~:text=2.-,adj.,Tiene%20un%20horario%20flexible.
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