O caráter assimétrico do acordo entre o Mercosul e a União Europeia
- Jorgelina Ruiz

- há 16 horas
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Atualizado: há 19 minutos

O Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia são protagonistas de um dos acordos comerciais mais ambiciosos das últimas décadas. As negociações, iniciadas há mais de 20 anos, foram marcadas por sucessivos atrasos de ambas as partes, motivados por razões políticas e, sobretudo, por divergências quanto à direção que o bloco latino-americano deveria seguir. Do lado europeu, os principais entraves vieram da resistência de alguns países com forte setor agrícola, liderados pela França.
Diante do recente avanço da China, a União Europeia se tornará o primeiro grande parceiro comercial a formalizar um acordo com o Mercosul – feito que nem os Estados Unidos nem a própria China alcançaram – oferecendo acesso preferencial aos países do bloco em uma região historicamente muito protegida. Para o Mercosul, trata-se também do maior tratado já negociado (Latorre, María C.; Yonezawa, H., e Olekseyuk, Z., p. 49).
Recentemente, sob a Presidência Pro Tempore da Argentina no Mercosul, o presidente Javier Milei destacou que o bloco deve avançar "para um esquema comercial e regulatório muito mais livre, em vez da cortina de ferro à qual estamos submetidos, no qual cada país possa gozar de maior autonomia para aproveitar suas vantagens comparativas e seu potencial exportador".
Essa postura está alinhada com a transformação que o bloco vem experimentando desde o início do século XXI, ao transitar de um “regionalismo autônomo” para um “regionalismo aberto” (Merino citado em Simonoff, A., p. 59).
Ambas as regiões compartilham uma história comum, enraizada em vínculos culturais, sociais e políticos que as conectam há séculos. Há, portanto, uma percepção amplamente difundida de que esse passado compartilhado pode contribuir para estabelecer um marco de entendimento que favoreça o diálogo e a negociação comercial, mais do que com outras regiões do mundo.
Sob essa mesma perspectiva otimista, a associação comercial representa uma oportunidade incontestável. O acordo prevê a redução de tarifas em mais de 90% das exportações totais do bloco regional, amplia o acesso a um mercado de 450 milhões de pessoas, coloca os exportadores do Mercosul em condições de igualdade com concorrentes de países que já mantêm acordos comerciais com a União Europeia, viabiliza o fornecimento mais barato de insumos para a produção e simplifica os processos de certificação, que atualmente mais dificultam do que garantem a segurança nas transações comerciais.
Outro aspecto relevante é o potencial de estímulo a novos investimentos europeus na região, considerando que a União Europeia é o principal investidor global. Segundo estimativas oficiais, os investimentos poderiam crescer 177% “dez anos após a assinatura do tratado” (Chancelaria Argentina, 2025).
O otimismo em torno do acordo é tal que se argumenta que sua conclusão fortaleceria a integração latino-americana ao estabelecer um “denominador comum” nos requisitos de origem com países que já mantêm acordos semelhantes com a União Europeia. Em outras palavras, sugere-se implicitamente, que a integração regional só seria viável por meio da Europa.
No entanto, esse entusiasmo tende a obscurecer a profunda assimetria existente entre as duas regiões. A concretização do acordo pode resultar em uma inserção internacional dependente, com potenciais prejuízos para setores econômicos estratégicos, como a indústria manufatureira do Mercosul, curiosamente apontada como uma das principais beneficiárias da associação.
As significativas disparidades de capacidade entre as economias europeia e latino-americana lançam dúvidas sobre o potencial do acordo como motor de desenvolvimento para a região sul-americana. Como adverte Dani Rodrik:
“os defensores do livre comércio costumam admitir que algumas pessoas podem sair prejudicadas no curto prazo, mas em seguida argumentam que, a longo prazo, todos (ou ao menos a maioria) sairão ganhando” (Rodrik citado em Simonoff, 2011).
Sem dúvidas, o Mercosul precisa traçar estratégias eficazes para fortalecer sua inserção internacional. Um caminho possível consiste em estabelecer parcerias com regiões que tenham superado suas defasagens tecnológicas e estruturais por meio da industrialização, e não pela subordinação a blocos mais desenvolvidos. As economias do Sudeste Asiático representam um exemplo claro dessa trajetória.
Diante disso, cabe questionar: este acordo contribuirá efetivamente para o fortalecimento das capacidades produtivas e tecnológicas do Mercosul, ou representará apenas um ganho para as empresas europeias?
As assimetrias entre o Mercosul e a União Europeia.
Por ora, é preciso olhar para o presente, onde as assimetrias entre as duas regiões são evidentes. Basta observar indicadores como o desempenho econômico, a composição do comércio inter-regional, as capacidades tecnológicas e de inovação, além das diferenças normativas, sociais e ambientais.
Segundo dados do Banco Mundial (2025), a União Europeia apresenta um Produto Interno Bruto (PIB) de 15 trilhões de dólares e um PIB per capita de 34.859 dólares – ambos calculados a preços constantes de 2015. Por sua vez, de acordo com a CEPAL, o Mercosul registra um PIB agregado de 2,9 trilhões de dólares e um PIB per capita de 10.500 dólares, com valores ajustados a preços constantes de 2018.
No plano comercial, a União Europeia importa predominantemente bens primários do Mercosul e exporta bens manufaturados (produtos farmacêuticos, máquinas, equipamentos industriais e eletrodomésticos). O Mercosul, por sua vez, exporta principalmente petróleo, alimentos, minerais e matérias-primas.
No campo da inovação, a disparidade entre as regiões também é evidente. Em 2023, a União Europeia investiu 2,26% do seu PIB em pesquisa e desenvolvimento (P&D), enquanto o Mercosul destinou apenas 1% em 2021. Segundo dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO), a União Europeia registrou 199.275 pedidos de patente, em contraste com os 5.841 pedidos apresentados pelo Mercosul.
Quanto à capacidade industrial, os países europeus ocupam posições de destaque no Índice de Desempenho Industrial Competitivo da UNIDO: Alemanha (1º), Países Baixos (10º), Itália (11º) e França (12º). Entre os países latino-americanos, o Brasil aparece como o melhor colocado (42º), seguido pela Argentina (55º), Uruguai (78º) e Paraguai (87º).
No plano normativo, as exigências da União Europeia em matéria de propriedade intelectual e compras governamentais introduzem tensões significativas. A ampliação dos direitos de propriedade intelectual pode restringir a produção de medicamentos genéricos, comprometendo a soberania sanitária dos países do Mercosul. Paralelamente, a abertura das compras governamentais às empresas europeias reduz a margem de manobra dos Estados sul-americanos para fomentar a indústria local, enfraquecendo instrumentos de desenvolvimento endógeno (Infobae, 2024).
No que diz respeito às questões ambientais e trabalhistas, as assimetrias também são evidentes. A União Europeia exige compromissos vinculantes relacionados ao Acordo de Paris, ao combate ao desmatamento e à conformidade com os padrões trabalhistas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em contraste, os países do Mercosul operam sob marcos regulatórios mais flexíveis e dispõem de menor capacidade de fiscalização (Infobae, 2024). Esse descompasso pode se traduzir em barreiras comerciais e na consolidação de um novo tipo de “protecionismo verde”, que condiciona o acesso de produtos sul-americanos ao mercado europeu sob o argumento da sustentabilidade.
Diante de todos esses elementos, o Acordo de Associação Estratégica entre o Mercosul e a União Europeia configura-se como uma oportunidade relevante para ampliar mercados e atrair investimentos, mas também como um desafio que pode aprofundar as desigualdades estruturais já existentes. As assimetrias econômicas, tecnológicas e normativas entre as duas regiões indicam que os benefícios do acordo tendem a ser distribuídos de forma desigual, potencialmente reforçando a dependência do Mercosul em relação ao bloco europeu.
Nesse cenário, o verdadeiro desafio para o bloco sul-americano não reside apenas na obtenção de condições tarifárias mais favoráveis, mas sobretudo no fortalecimento de suas capacidades produtivas, tecnológicas e institucionais. Somente por meio desse esforço será possível transformar um acordo comercial assimétrico em uma ferramenta efetiva de desenvolvimento sustentável e soberano.
Texto escrito por Jorgelina Gimenez Ruiz
É cientista política pela UNSTA (Argentina). Mestranda em Relações Internacionais (IRI-UNLP) e diplomada em Práticas Aduaneiras (UTN).
Revisão por Eliane Gomes
Edição por João Guilherme V.G
Referências:
Latorre, María C.; Yonezawa, Hidemichi; Olekseyuk, Zoryana (2021). O impacto econômico do acordo União Europeia-Mercosul na Espanha. Disponível em: https://comercio.gob.es/es-es/publicaciones-estadisticas/Documents/Impacto_EU-MCS_VF_v4(corregido).pdf
Simonoff, A. (2020). Acordos Mercosul-União Europeia sob a perspectiva da política externa argentina. Iconos 34(68), 57-73.
Infobae (2024). Mercosul – União Europeia: muito mais que um acordo de livre comércio. Disponível em: https://www.infobae.com/revista-chacra/2024/06/23/mercosur-union-europea-mucho-mas-que-un-acuerdo-de-libre-comercio/
Milhorance, F. Desmatamento e leis trabalhistas: a disputa no Acordo UE-Mercosul. Disponível em: https://elsurti.com/reportaje/2023/08/18/que-exige-la-union-europea-al-mercosur-en-ambiente?







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