Rio, o mosaico de contradições: Uma análise enraizada na realidade carioca
- Denise Reis

- 9 de out.
- 8 min de leitura
Atualizado: 10 de out.
O Rio de Janeiro é, sem dúvida, a "Cidade Maravilhosa" – cartão-postal do Brasil. Além de belas praias, do samba e da alegria contagiante de seu povo, a cidade abriga uma diversidade impressionante. Seus bairros transitam entre as maravilhas da Zona Sul, como Copacabana e Ipanema, e a Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina. A cidade se estende pelo Centro, onde está o Sambódromo, e segue para o Estácio, Rio Comprido e os bairros do subúrbio carioca, como Madureira. Eu, nascida e criada no Morro de São Carlos, no Estácio, conheço profundamente essas realidades e suas complexas contradições.
Esta análise busca ir além do olhar superficial para desvendar as contradições que definem o Rio. Aprofunda-se em cenários que a mídia e o imaginário popular frequentemente ignoram: a invisibilidade da periferia, a luta pela cidadania, a precariedade do transporte e a resistência diária de um povo que, apesar das mazelas, constrói sua própria alegria e dignidade.
Rio e a Paisagem da Desigualdade: Do Oculto ao Visível
A paisagem carioca é um testemunho silencioso da desigualdade. De um lado, favelas se agarram às encostas; de outro, bairros de elite se estendem à beira-mar. A segregação, no entanto, não ocorre apenas entre o "asfalto" e o "morro", mas também entre as próprias comunidades, dependendo de sua localização e visibilidade. A diferença entre a Rocinha e Tomás Coelho é um exemplo clássico dessa divisão.
A Rocinha, frequentemente citada como um dos principais focos de tuberculose no Brasil, expõe uma das maiores ironias geográficas da cidade. Situada entre os bairros de luxo de São Conrado e Gávea, sua proximidade com a riqueza não se traduz em qualidade de vida para seus 72.021 moradores (Censo 2022, IBGE). Em 2013, a incidência de tuberculose era de 372 casos por 100 mil habitantes, enquanto a média nacional era de 35,4 casos por 100 mil habitantes, dados do Ministério da Saúde em seu Boletim Epidemiológico de 2014. A taxa na Rocinha era, portanto, cerca de 10,5 vezes maior que a média nacional daquele ano. Mais recentemente, o Boletim Epidemiológico de Tuberculose no Município do Rio de Janeiro de 2024, produzido pelo EpiRio (Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro), divulgou que em 2023 a favela teve 358 notificações. Essa realidade brutal é fruto direto de problemas urbanísticos crônicos: alta densidade populacional, falta de saneamento básico e moradias precárias sem luz solar ou ventilação. O "valão", um canal a céu aberto que mistura esgoto, lixo e ratos, simboliza a poluição da riqueza pela miséria, e dados recentes e relatos de moradores de 2024 e 2025 mostram que o saneamento básico na favela continua sendo um problema crítico, mesmo com algumas obras e projetos pontuais.

Em contraste, o bairro de Tomás Coelho, onde morei por anos após sair do Morro de São Carlos e onde ainda tenho por lá grandes laços afetivos, amigos e família, vive uma realidade de invisibilidade. Enquanto a Rocinha atrai turistas e projetos — ainda que mal executados —, Tomás Coelho e bairros similares são largamente esquecidos. A escassez de documentação sobre saneamento básico revela o descaso do poder público. Seu Índice de Desenvolvimento Social (IDS) é de 0.572, bem abaixo de bairros da Zona Sul como Lagoa (0.854), Leblon (0.809) e Ipanema (0.801), segundo dados do Instituto Pereira Passos - IPP, Prefeitura do Rio de Janeiro, referentes ao ano de 2000. Embora sejam dados mais antigos, eles ainda são citados em alguns estudos para exemplificar as disparidades sociais e de desenvolvimento em diferentes bairros do Rio de Janeiro. De acordo com o Censo 2022 (IBGE), o bairro tem 27.674 habitantes, uma população considerável que depende do transporte público para se conectar com o resto da cidade e, assim como outras áreas da Zona Norte, enfrenta os desafios da mobilidade urbana.
O Samba como Expressão de Resistência
Apesar das mazelas e da ineficiência do Estado, a cultura que emerge do morro e do subúrbio é a expressão mais autêntica do Rio de Janeiro, tendo o samba como principal elemento. A história das favelas cariocas está ligada à luta por moradia e existência. O Morro da Providência, no Centro, é considerado a primeira favela brasileira. Em 1897, ex-soldados e ex-escravos se instalaram no local, uma resposta à falta de moradia e à política de remoção de cortiços
O Estácio, berço do samba carioca e lar do Morro de São Carlos, revelou talentos como Luiz Melodia, Dominguinhos do Estácio e Zeca da Cuíca. Mas sua maior contribuição para o gênero vem de Ismael Silva. Embora tenha nascido em Niterói, foi no Estácio que Ismael se tornou uma figura central para o samba. Ele foi um dos grandes responsáveis pela fundação da Deixa Falar em 1928, considerada a primeira escola de samba do Brasil. Ismael e seus companheiros revolucionaram o ritmo, tornando-o mais cadenciado e adequado para os desfiles de rua, moldando o samba como o conhecemos hoje. A fundação da Deixa Falar é um marco histórico e o ponto de partida para a criação de todas as escolas de samba que viriam a seguir. O legado da Deixa Falar é tão forte que hoje ele é representado pela G.R.E.S. Estácio de Sá, que desfila na Sapucaí com as cores e a força do bairro.

E como falar do meu território sem reverenciar as mulheres que o construíram? Como Dona Chimbinha, amiga de minha mãe, cuidadora de filhos e de muitos carnavais, que do alto de seus 90 e poucos anos é uma baluarte e guardiã da história do samba no bairro.
O bairro do Rio Comprido, vizinho ao Estácio, também carrega histórias relevantes. Parte do circuito da Pequena África, foi um dos eixos de dispersão da cultura e do samba, recebendo muitos negros que chegavam ao Rio e se fixavam em comunidades vizinhas. A escola Jenny Gomes, onde estudei, fica exatamente na região onde ocorreu a tragédia do viaduto Paulo de Frontin. Em 1971, o desabamento de um trecho em construção resultou na morte de 29 pessoas, um evento que marcou a memória do bairro.
Madureira, na Zona Norte, é mais que um bairro — é um verdadeiro epicentro cultural. Conhecido como o "berço do samba" por abrigar duas das mais tradicionais escolas, a Portela e o Império Serrano, o bairro tem em Paulo da Portela uma de suas figuras mais importantes. Conhecido como o "príncipe negro do carnaval carioca", ele foi um revolucionário. Paulo lutou incansavelmente para mudar a imagem preconceituosa do sambista, exigindo que os membros da escola se vestissem elegantemente, com trajes de terno e chapéu, dignificando suas raízes. Essa postura, que valorizava a arte e o artista, foi tão marcante que, segundo algumas narrativas, ele serviu de inspiração para Walt Disney criar o personagem Zé Carioca em sua visita ao Brasil.
A lendária rivalidade entre Portela e Império Serrano, que se acirrou nos anos 50, contribuiu para a tradição e o brilho dos desfiles de carnaval. O bairro também abrigou o Teatro de Madureira, fundado pela vedete e atriz Zaquia Jorge, uma das estrelas do teatro de revista e figura icônica para o subúrbio carioca, cuja história inspirou o famoso samba-enredo "O Mundo Encantado de Zaquia Jorge", do G.R.E.S. Império Serrano, de 1968, que celebra sua vida e a importância que ela teve para a cultura do bairro (Biografias de Zaquia Jorge e historiografia do samba).
A Força da Resistência e o Perigo da "Glamourização da Miséria"
A falta de políticas públicas adequadas se manifesta diretamente no cotidiano do carioca. A mobilidade urbana é um dos maiores desafios: sistema de transporte ineficiente, caro e superlotado. Pesquisas de órgãos como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que o Rio tem um dos piores sistemas de transporte do mundo. Além disso, um estudo da Confederação Nacional do Transporte (CNT) revelou que 11% dos passageiros perdem duas horas ou mais em cada trajeto.
Em meio às mazelas, a população carioca demonstra uma capacidade extraordinária de auto-organização e resistência. Essa força se manifesta em formas de ativismo, cultura e empreendedorismo que desafiam a invisibilidade imposta pelo sistema. A horta comunitária no Complexo de Manguinhos, revitalizada em 2023, e a Biblioteca Parque, que atende mais de 2 mil pessoas por mês, provam que iniciativas de longo prazo podem florescer.
A resistência também se materializa em iniciativas de economia solidária, como a COOPAMA, Cooperativa Popular Amigos do Meio Ambiente, no Jacarezinho. A cooperativa, que hoje conta com mais de 100 cooperados, ocupa a ex-fábrica da Hitachi para garantir o sustento de famílias com a reciclagem de toneladas de materiais por mês. A manifestação mais visível da resistência é o ativismo, especialmente os movimentos de mães. As Mães de Acari, surgidas após o desaparecimento de 11 jovens em 1990, são consideradas o marco inicial de uma "metodologia de luta" que se espalhou pelo país, unindo vozes para denunciar a violência de Estado que "mata preto, pobre e favelado".
Esses movimentos denunciam dados alarmantes que muitas vezes são ignorados, como as causas invisíveis. O Rio de Janeiro é o segundo estado com mais mortes violentas de pessoas LGBTQIA+. O risco de morte por violência obstétrica para mulheres negras é 2,7 vezes maior que para mulheres brancas; e nove em cada dez pessoas mortas em ações policiais são negras. A invisibilidade atinge também a questão das pessoas desaparecidas. No início de 2024, o estado registrou mais de 2,5 mil pessoas desaparecidas, em sua maioria jovens e pessoas negras, evidenciando uma vulnerabilidade social e racial que precisa ser vista e combatida.
É crucial combater a "glamourização da miséria", um fenômeno onde a imagem da pobreza e da resiliência é explorada para consumo externo. A pobreza, para os moradores, não é um prêmio, mas uma condição de sofrimento imposta. A verdadeira potência da favela reside na sua capacidade de se auto-organizar e lutar por dignidade, desafiando um Estado que historicamente priorizou o espetáculo em detrimento da vida de seus cidadãos.
Conclusão
A análise dos contrastes do Rio de Janeiro não é apenas um exercício crítico. É a afirmação de que a verdadeira beleza da cidade não está nos cartões-postais, mas na resiliência e na dignidade do seu povo. A falta de saneamento, a ineficiência crônica do transporte público e a alta incidência de doenças como a tuberculose são manifestações de um processo histórico de segregação e ausência estatal. O Rio é um mosaico de contradições, e a perspectiva de quem vive e permeia estes espaços é a síntese dessas realidades. Em meio às mazelas, a história, a identidade e a dignidade não só persistem, mas se reinventam e florescem, construindo um Rio de Janeiro que é, em última instância, muito mais complexo, fascinante e humano do que qualquer cartão-postal poderia sugerir.
Texto escrito por Denise Reis
Carioca, sagitariana e apaixonada por numerologia cabalística, Denise Reis é administradora de empresas, com especializações em gestão de pessoas, diversidade e inclusão. Gerente de Operações e Pessoas no Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), tem uma rica experiência no terceiro setor. Viagem, corrida de rua, boa música e a companhia de amigos são suas fontes de inspiração. Por muitos anos, dedicou-se a cozinhar como voluntária para a população em situação de rua e hoje colabora em um núcleo que se aprofunda no cuidado e bem-estar dos profissionais da sociedade civil.
Revisão por Eliane Gomes
Edição por João Guilherme V.G
Referências:
Mortes de pessoas LGBTQIA+: Dados do Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil e do Grupo Gay da Bahia (GGB), com relatórios referentes a 2023.
Violência obstétrica: Defensoria Pública do Rio de Janeiro de 2018 e Ministério da Saúde de 2023,
Mortes em ações policiais: Estudo da Rede de Observatórios da Segurança "Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão", de 2023.
Pessoas desaparecidas: Dados da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e relatórios de direitos humanos, com informações atualizadas para o início de 2024.







Denise Reis, que texto lindo! Uma visão real do nosso RJ.